VIDA ESCOLAR EM QUATRO ATOS

Vida escolar, em quatro atos.

I-Ato Grupo Escolar

São Paulo, capital, arredores da Via Anchieta próximo á fabrica de brinquedos da Trol onde papai trabalhava como técnico em processos plásticos. Região perto da serra do mar, fria e com muita neblina. A vila era pequena e nova, com ruas de terra ás margens da rodovia que levava a cidade de Santos. Gente pobre humilde, mas, não havia miséria e nem violência. As crianças brincavam nas ruas nos campinhos, mães sentadas em cadeiras na calçada em roda de conversas animadas. A noite muita fogueira e batata assada. Quermesse, festas juninas, e o circo eram motivos de alegria e ansiedade.

Sempre que lembro da minha infância, recordo com carinho das brincadeiras de escolinha.

Ganhei uma lousa de presente de natal e foi esse o início da minha docência. Aos dez anos eu reunia em casa as crianças da vizinhança e ministrava aulas com direito á recreio e lanchinho que minha mãe preparava com carinho.

Pouco tempo se passava desde o golpe militar, e o AI5 repercutia na vida dos Brasileiros como um vendaval de verão. Meu pai, leitor assíduo, queimava papeis no quintal. Fato que me intrigava, pois não entendia como uma pessoa podia atear fogo em livros?

Era proibido falar no ocorrido, nada era dito, nem explicado, apenas chamas e depois fumaça...

Nessa época rumores em família davam conta que meu tio Milton, precisou fretar um avião para mandar meu primo embora do País. Ailton foi para Argentina, Suécia e depois para Moçambique onde trabalhou na cruz vermelha. Só em 1980 pude ver meu primo novamente, casado e com filhos.

São Paulo, capital, Jardim Maristela, 1964, meu primeiro ano de escola teve início em meio de muita preparação e expectativas. A escola estadual funcionava em um barracão de madeira que no bairro era chamada de “Escola de Pau”. Sem muros, sem cantina e sem pátio.Apenas meia dúzia de salas e muita coragem dos mestres.Nada disso tirava a importância de ir para a escola.O sentimento era de prestígio ao chegar o momento de freqüentar a escola.Lembro do uniforme, da lancheira, dos cadernos novos, da bolsa de escola e principalmente da relevância do fato de ir para escola.A escola de pau era pobre, os alunos humildes, muitos não tinham sequer sapato e blusa de frio.Vez ou outra eu voltava para casa sem a blusa de lã, que eu doava para as crianças com frio.

No bairro nosso carro era o único, servia de ambulância á mulheres prestes a dar á luz, enfermos, crianças com febre e tudo isso normalmente na madrugada.

Meu primeiro dia na escola foi esperado, programado e muito querido. O medo do desconhecido foi superado logo no primeiro dia, com o carinho e dedicação da minha primeira professora. Mulher de fisionomia austera, esguia, cabelos compridos negros, olhar penetrante, voz clara e amável. Todos os dias pela manhã, antes de iniciar as atividades do dia, Dona Cordélia, nos fazia exercitar as mãozinhas, congeladas pelo frio cortante que tomava a sala da “escola de pau.” Sempre que necessário ela conduzia nossos dedinhos pela folha de papel para desenhar as letras e números, suas mãos eram quentes e tinha hálito de hortelã. Não lembro de ter dado muito trabalho para mestra carinhosa, pois já estava alfabetizada, pela minha mãe, quando entrei na escola. A dificuldade eram os números. Espantei-me com o infinito dos algarismos, a multiplicidade das contas e a dificuldade de decorar a tabuada. Identifiquei-me com as partes do corpo humano: cabeça, tronco e membros. Voltei para casa repetindo mentalmente essas três palavras, isso eu podia decorar.Mesmo nas esperadas férias as brincadeiras eram interrompidas todos os dias, para fazer a lição de casa.

No ano seguinte já no prédio novo, todo de concreto com cantina e pátio, tive contato com livros de histórias e contos. Nesse ano ganhei muitos livros de presente de aniversário principalmente de minha madrinha. Foi época também de arrumar os dentes, coloquei aparelho móvel. O aparelho tinha que ser retirado na hora do lanche, poucas vezes lembrava de colocá-lo de volta na boca e muitas vezes ele ficava pelo caminho de volta para casa. O chão era de terra, não havia asfalto, e eu ia e voltava a pé para o grupo escolar.Nas frias manhãs de junho, as ruas eram desertas, e o ar gelado cortava o rosto fazendo corar. Nos dias de chuva a sombrinha e capa cobriam as roupas, mas deixavam molhar a meia e o sapato vulcabrás. Existiam dias que a neblina cobria o lado de lá da rua e não se podia ver nada além de uma fria nuvem cinza. A volta da escola era cercada por sensações agradáveis, gente por toda parte, ar quentinho batendo no rosto e um cheiro de feijão fresquinho no ar.

Havia respeito dentro da sala de aula, o silêncio era uma constante e quando a mestra falava todos ouviam. Os trabalhos diários e os deveres de casa eram entregues no prazo e corrigidos no dia. Existiam castigos para os falantes, atrasados desobedientes e mal educados. Esses não brincavam no recreio ou ficavam sentados em um banquinho atrás da porta da sala. Deus me livre da Diretora! Era a ultima alternativa da mestra querida. Não lembro de ter merecido tal sacrilégio em toda vida escolar.

O último ano do grupo escolar teve gosto de etapa final e missão cumprida. Além disso, era certeza de não ter como castigo, por mau comportamento e notas baixa, a internação no colégio Regina Mundi sinônimo de autoritarismo e sacrifícios.

A festa de entrega do diploma da quarta série do grupo teve direito á vestido novo de gorgurão, penteado rabo de cavalo, sapato boneca preto de verniz e muitos beijos e parabéns.

II-Ato - O Ginásio

No ano seguinte mudamos para o interior de São Paulo. Campinas, cidade natal de minha mãe. Papai fora montar o departamento de plásticos da fábrica de máquinas de costura, a Singer do Brasil.

Na vitrola ABBA, Rolling Stones, Bee Gees , os recém separados Beatles e os Jackson Five. Nas lindas tardes de domingo no cinema (Windsor, Ouro verde e Jequitibás), Macunaíma e Os Deuses e os Mortos e algumas pornô-chanchadas quase nada de nacional devido à censura e total alienação política. Sucessos da época era internacional Poderoso Chefão, Laranja Mecânica, Um Estranho no Ninho e muitos outros, foi realmente uma época rica do cinema. Começa a surgir o tropicalismo, Gal Costa, Maria Bethânia, Gilberto Gil e Caetano Veloso, formavam o grupo Doces Bárbaros. Raul Seixas cantava a rebeldia da juventude. O samba estava em alta na voz de Martinho da Vila.

Sob o comando do presidente Médici, que prometia extermínio aos grupos esquerdistas, a nação se prepara para a copa do mundo. Todos vestidos de verde amarelo. Era à hora do ”Prá Frente Brasil!”.

Era tempo de cursar a primeira série do ensino fundamental. As escolas estaduais eram concorridas e foi necessário fazer um cursinho de admissão. O curso tinha duração de um ano e preparava o aluno para ingressar nos fortes colégios estaduais.Fiz a admissão na escola tradicional de Dona Irai, senhora de meia idade gorduchinha de estatura baixa, com cara de poucos amigos.A sala de aulas funcionava em sua casa, em um prédio nos fundos. Eram duas turmas, uma pela manhã e outra á tarde. Foram muitas revisões, pilhas de livros para ler, milhares de listas de exercícios de matemática e muita lição de casa. No final do ano prestei a tal prova e não consegui entrar no colégio que meus pais queriam. Fui remanejada para o colégio Aníbal de Freitas, o segundo lugar em procura na cidade.

A escola fervia de novidades e colegas vindos de todos os lugares. Existiam dezenas de salas, laboratório de química, sala de projeção de filmes, sala de artes, salão de festas, toda sala tinha alto falante que transmitia ordens e avisos da diretoria (alta tecnologia). O colégio era imenso, tinha inúmeras quadras de futebol, vôlei, basquete, quadra aberta, quadra fechada e dúzias de funcionários. A lista de material era enorme, livros de todas as matérias, cadernos, compasso, pastas, folhas, canetas coloridas e uniformes de inverno, verão e de ginástica.

As aulas, divididas por matéria, duravam cinqüenta minutos. Fascinou-me a primeira aula de ciências, o esqueleto pendurado no fundo da sala me fazia entender a formação dos ossos e a divisão aprendida no grupo: cabeça, tronco e membros. Filmes do tipo documentário eram apresentados na sala de projeção a cada quinze dias. Esperávamos por esses momentos ansiosos e interessadíssimos, na hora da projeção o silêncio era total.

As aulas de química, sempre coloridas e esfumaçadas, ministradas pelo professor Flávio, que exigia o uso de aventais brancos.

Nas aulas de francês com Dra. Péttine, a disciplina era exceção, a regra era bagunça e risos provocados pelo esforço de fazer biquinhos na pronuncia do bucólico idioma.

Havia aulas de Educação Moral e Cívica, onde civismo e cidadania era a pauta, mas o que eu lembro mesmo destas aulas era que em uma ocasião o professor nos levou uma substância nova para conhecermos que, de acordo com ele, era prejudicial á saúde e nunca deveria ser consumida por nós, a maconha.

Nas aulas de canto e música com o Professor Walmor, sempre alinhado no seu terno cinza, nos era apresentados os hinos Brasileiros que eram exaustivamente ensaiados para apresentação quase que diária.

Nas séries finais aulas de inglês que Miss Margareth ministrava com maestria.

Muitos campeonatos e torcidas nas aulas de educação física, disputavam o titulo de melhor time da escola, e depois jogos entre escolas premiavam o melhor time de vôlei, futebol e basquete. Nessa ocasião apareceram muitos dos melhores jogadores de vôlei e basquete dos anos setenta, como Emil Rached que foi o mais alto jogador de basquete da seleção Brasileira, que ganhou duas medalhas bronze no Mundial do Uruguai (1967), e ouro no Pan de Cai (1971).

III-Ato- O Colegial

Meados dos anos setenta muitos bailinhos com luz negra e cuba libre, nas vestes camisa Hang Tang, perfume Pacholly, bata indiana estilo hippie, calças com enorme boca de sino, cabelo black power, e óculos redondinhos. Nesse cenário de muitas cores e mudanças inicio minha estada no colegial. Na música Pink Floyd, The Police, Tim Maia, Rita Lee, Clara Nunes e Simone. O cinema produzia os grandes filmes catástrofes como Terremoto e Tubarão. As películas de terror foram precedidas por Carrie a Estranha e ainda o musical Embalo de sábado à noite.

Na política o país presenciava sob comando rígido do presidente Ernesto Geisel um período de distensão lenta, gradual e segura, com vistas à reimplantação do sistema democrático no país. As iniciativas liberalizantes não evitaram, entretanto, os recuos autoritários do governo, registrando-se, durante todo o período Geisel a repressão às organizações clandestinas e ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a utilização, em diversas ocasiões, do AI-5.

Misturado ao projeto de entrar na faculdade estava à vontade de casar e ter filhos.

No colégio as amizades se consolidavam. As reuniões de trabalho tornaram-se produtivas e aguardadas com expectativa. Nelas eram discutidos assuntos diversos, como política, música, teatro, sexo, literatura, poesia que enriqueciam nossas tardes e aproximavam os iguais.

Essa época se formava os pares de casais, muitos, por descuido, apressavam-se no casamento por ocasião de uma gravidez.

As aulas de química e física tomaram um impulso avassalador. Os livros eram gigantes, as fórmulas enormes e as notas cada vez menores.

Agora além de inglês no colégio, tínhamos aulas nas escolas particulares de idiomas.

Aula de culinária, corte e costura, tapeçaria e trabalhos manuais também faziam parte da formação de uma moça na época.

O cursinho preparatório para o vestibular veio tirar a tranqüilidade das tardes festivas e repletas de atividade coletiva.

Aulas encenadas e teatrais faziam da função de aluno, uma preparação para o gosto por palcos iluminados.

A escolha da carreira era precedida de uma carga de responsabilidade inadequada para os nossos dezessete anos. A ponderação sobre as escolhas não estava livre dos preconceitos, costumes da época e palpites nem sempre equilibrados dos mestres e pais.

Muitos optaram por profissões que lhes foi quase imposta, poucos acertaram a escolha.

IV-Ato- A Faculdade

7774607 Esse era meu R.A.(registro acadêmico), um dos poucos números que decorei durante toda minha vida escolar. Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCC), eu era o nome da instituição da qual faria parte nos próximos quatro anos, como aluna.

O prédio era de concreto e grande, no primeiro ano salas estilo auditório lotadas de jovens cheios de projetos e muitas expectativas. Nos anos seguintes á medida que as cadeiras esvaziavam nossos sonhos e expectativas diminuíam.

Os laboratórios de fisiologia, química e zoologia eram bem equipados e os professores das matérias muito competentes. Dentre eles destaco Gláucia Pastore especialista em nutrição na unicamp e personalidade do mundo acadêmico atual.

As temidas e disputadas aulas de anatomia eram dadas por um “ser” com cara de cadáver, cor de defunto e andar de múmia. Muito mais amedrontador que os pedaços humanos boiando em tanques de formol.

Não menos arrepiantes eram os barulhos produzidos pelas patas dos pobres animais espetados vivos sapateando sobre o isopor nas aulas de Zoologia.

Os cursos de extensão universitária foram muitos, dentre os quais os mais apreciados foram o de trans-sexualismo em Rio Claro, de AIDS na USP em São Paulo , de montagem de filtro biológico em aquário de água doce e salgada e o melhor de todos o de biologia marinha em Ubatuba.

Nos últimos anos as reuniões e trabalhos da comissão de formatura tomavam o que restava dos nossos preciosos minutos de folga. Foi um longo tempo gasto recompensado por uma formatura digna de uma turma de medicina, com direito a baile de gala, missa ecumênica, colação de grau, churrasco e placa de bronze comemorativa.

Em 31 de dezembro de 1978, o presidente Geisel revogou o AI-5, dando um passo decisivo no processo de redemocratização do país.

Pelé faz seu ultimo jogo profissional.E o Brasil se prepara para outra copa do mundo agora sem o rei do futebol.

No final do curso a política Brasileira estava a passos da democracia, nossa consciência política voltava a dar sinal de vida.

Luis Inácio Lula da Silva lidera a primeira greve geral na região do ABC e desponta como uma forte liderança política.

João Figueiredo foi o ultimo presidente militar e governou até 1985. Houve a concessão de uma anistia ampla geral e irrestrita aos políticos cassados com base em atos institucionais.

Meu primo Ailton voltou a morar no Brasil. Hoje reside em condôminio fechado em vinhedo e é vizinho do meu irmão Eduardo, guarda na memória tempos que viu escapulir os sonhos e a esperança de um Brasil melhor, mais justo, com direitos e oportunidades iguais para todos.

Fim

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Ellen Marreiro
Enviado por Ellen Marreiro em 01/12/2012
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