- Está no Inferno? Abraça o Capeta.

"Está no Inferno? Abraça o Capeta."

Essa frase ecoa bastante na minha cabeça agora. Talvez tenha sido um erro matar aquele Ancião na frente de toda a Assembléia. Principalmente tratando-se de um maldito Raça Pura. Por Gaia, como eu odeio esses Garou metidos a Presas de Prata.

Ataquei. Em Crinos, rasguei a garganta do bastardo e enfiei minha outra mão em seu peito, tentando arrancar seu coração. Um Filho de Gaia amigo meu falou que aquilo foi Fúria. Estúpido. Bom amigo, mas estúpido. Uma tribo que fala tanto de amar e não reconhecem um ato desesperado de Amor quando vêem um.

É minha companheira. É nosso filhote. Que se foda o que a Litania diz, nós consumamos nosso Amor, geramos Vida no ventre dela, a mesma Vida que Gaia sopra pelo mundo a fora, e não vamos permitir que uns bastardos que pensam que mandam transformem tudo isso em Morte. Não enquanto eu puder rosnar e batalhar.

Vida. Essa nunca foi uma palavra muito agradável pra um Roedor de Ossos. Definitivamente não tem o mesmo significado que para as outras tribos. Elas não agüentariam a "nossa" Vida. Como se não bastasse vivermos à margem da sociedade humana, agora somos caçados na Sociedade Garou. Graças a Mãe Rato, que ficou ao nosso favor, os Roedores de Ossos ajudarão em nossa fuga. Nosso filhote não merece a vergonha de ser um Ronin. Posso ser cuspido como um lixo pelos Crias de Fenris, mas eu tenho meus conceitos de Honra.

Divina-Comédia, minha companheira, sugeriu que deixássemos o filhote com os Filhos de Gaia. Foi a primeira e última vez que rosnei para ela. Se eu tinha quaisquer dúvidas de que a amava elas caíram por terra quando ela sorriu para mim e me acariciou, mostrando que compreendia minha reação. Nessas horas eu queria poder ter contato com minhas vidas passadas... com certeza ela estava comigo na maioria delas.

Não é lá muito sábio se perder em pensamentos conforme estou fazendo quando sua cabeça está sendo rifada por aí. É estranho, nunca senti o Lobo tão próximo de mim. Proteger a fêmea. Proteger a cria. Proteger a toca. Buscar o alimento.

É incrível como os seres humanos têm o dom de serem filhos da puta. E isto não é uma coisa que um Espírito ensine: Eles aprendem por si só. Como humano não consegui uma migalha de pão, nenhum corno se dispunha a ajudar um homem faminto com duas bocas para alimentar, mas já como lobo... bem, eles também não ajudaram E ainda ganhei um banho de água fria no focinho. Espero que o açougueiro tenha grana para bancar uma vitrina nova...

A parte feliz da história foi que consegui arranjar, enfim, comida. Carne o bastante para sustentar Divina-Comédia, eu e o filhote. O batizamos de Miguel “Sorriso-Vazio”; é claro que ele ainda não teve a chance de passar por seu Batismo de Fogo, muito menos por um Ritual de Passagem. Não é tempo. Não há tempo. Talvez nunca haja tempo.

Olho para Divina-Comédia dormindo, serena. Sorriso-Vazio também repousa tranqüilamente no colo dela. Eu, como sempre, não durmo. Meu sangue Ahroun me obriga a ficar acordado, observando, protegendo. Sempre fui um ótimo guerreiro, diabos! Se sou tão eficiente para rasgar gargantas, por quê não para evitar que duas delas sejam rasgadas? Especialmente esse par de gargantas.

A rodoviária está vazia, exceto por um grupo de viciados que se destacam à esquerda. Estão longe, mas daqui posso sentir os Malditos que os parasitam. Sinto muito, Gaia, estou ocupado cuidando da minha FAMÍLIA agora. Meus deveres como Garou terão que esperar.

Lutar contra meus olhos nunca foi meu ponto forte. Aliás, sempre fui conhecido por ser um preguiçoso imprestável. Divina-Comédia nunca me enxergou desta forma; ela era capaz de enxergar o Homem que havia por baixo daqueles trapos imundos e ar ébrio. Jurei ao Rato que se eu sentisse os lábios daquela mulher nunca mais provaria o amargo gosto do álcool, afinal, eu o tomava para sufocar o amargo gosto da vida... mas com ela a vida é doce, mesmo com barulhos de armas sendo destravadas.

Com este som imaginário eu acordo. Olhei em volta, com minha chave de rodas na mão esquerda e chave de fenda na mão direita. Nada. Apenas o grunhido baixo de Sorriso-Vazio que, junto a Divina-Comédia, está acordando. Era hora de partir, iríamos acabar perdendo o trem.

Decidi que era melhor cortarmos caminho pelos esgotos. Divina-Comédia reclamou, tendo nosso filhote como argumento, mas lembrá-la de que Crias de Fenris não andam junto aos Ratos a fez mudar de idéia. Sobrevivência. Todo Roedor de Ossos está sempre disposto a fazer qualquer sorte de sacrifícios em nome desta palavra. Menos minha amada. Menos meu filhote.

Caminhamos por duas horas tranqüilamente, depois disto tivemos um pequeno contra-tempo com algumas coisinhas nojentas da Wyrm. Parece que a Bastarda esqueceu que eu AINDA sou um Ahroun... o melhor dos Roedores de Ossos, pelo menos neste continente. Um Esguio e dois Fomores foram postos abaixo. A luta me fez lembrar de porquê eu havia optado por não usar a Umbra. De qualquer maneira, chegamos à zona férrea; transporte de cargas... e animais.

Se você nunca teve que matar tiras a sorte é sua. Eu te recomendo que nunca faça isso, por mais que possa parecer necessário. Deixe-os em Delírio, desacordados, o que for necessário, mas não matem. Se, como eu, acabarem matando um ou dois, bem, eu recomendo que não parem de matá-los nunca, pois eles não esquecerão do teu focinho.

A zona férrea estava cheia de tiras. Não podíamos passar na forma lupina por causa de Sorriso-Vazio: Ele precisava se manter oculto sob uma manta, caso contrário chamaria muita atenção, além do que, ele não sabe andar ainda. Batendo com a chave de roda numa lata de lixo eu consegui atrair a atenção deles enquanto Divina-Comédia corria em direção ao vagão oito. Iríamos utilizá-lo como hospedagem temporária, rumo à liberdade.

Eu? Bem... eu consegui, a grosso modo, escapar. Não me faça narrar a cena, não foi algo bonito. Uivos, presas, garras, golpes. Isto resume. Em pouco tempo eu estava em Hispo correndo ao lado do vagão, entrando nele em um pulo que assustou Miguel e fez com que ele desse seu primeiro rosnado. Olhei para Divina-Comédia, que se misturava ao pôr do sol que podia ser visto por cima de seus ombros e tive a certeza de que não iria me arrepender de nada feito naquela fuga.

Agora é questão de esperar. O trem deve nos levar ao Panamá, de onde iremos infiltrados num navio cargueiro até o Brasil. No momento tudo o que quero é fechar os olhos e usufruir da segunda noite em paz ao lado da mulher da minha vida.

Se alguém ousar tocar em meu filhote ou em minha amada, sentirá a Fúria do Amor. Seja esse alguém Ancião ou Cliath. Sou Arrebenta-Fuças e faço esta promessa sob a lua cheia.

White
Enviado por White em 14/02/2007
Código do texto: T380604