OLHOS QUE NÃO ME VÊM
Surgia mais um dia daqueles que prometem muito: brisa leve, sol tímido, flores a colorir o dia, nuvens dançando no céu. A janela aberta pondo o mundo em meu quarto, o odor da manhã regalado ao perfume das flores me furto a parar o tempo enquanto contemplo a manhã. Esfrego meus olhos num último bocejo e lavo a fronte nas águas límpidas do ribeirão à frente da casa. Ouço o doce canto dos pássaros e tomo meu caminho rumo à casa de Brunete afinal de contas o domingo promete. No caminho penso no que lhe dizer, cantar ou ainda declamar e divago:
“Brunette, amanheci pensando em você
Sem saber direito ainda o porquê
Sinto que nesta manhã assim direi
De uma vez por todas enfim contarei
Sou o homem de tua vida
Aquele a qual todos os dias espera
Sou eu mesmo, aquele que Deus dera
A você que Ele mesmo todavia pudera
Se fosse eu, meu Deus quem dera!”
Imagino seus grandes olhos azuis opacos, madeixas louras e a pele salpicada de sardas, suas mãos tão delicadas e vivas, sua voz tão doce e meiga... tenho de dizer que a amo, mas num lampejo de razão ponho meus pés no chão e deixo os meros devaneios tolos e me ponho a apressar os passos e quando finalmente chego, a vejo na soleira da varanda cantando:
“Natureza, natureza
Que és bela por si só
A quem diga quando morto
O homem volta ao pó
Digo pois com veraz certeza
Que não há quem possa afirmar
Contaminando tua pureza
Da carne na terra a dissipar
Tanta perfeição, tanta perfeição
Lá vamos ao pó tornar
Devo pois a ti contemplar
E decido enfim discordar
Porque no final a ti somar?
Natureza, natureza
Que és bela e tão só
A quem veja quando despertas
Na cabeça dá um nó
Se na perceber bem com clareza
Aceitar a minha miudeza
E me render calado à tua grandeza
Natureza, natureza!”
Tal canto é tão maravilhoso que calado permaneço e me aproximo dela, mas a brisa me denuncia, ela se volta em minha direção com os olhos fitos no infinito e me diz:
Demorou a chegar, não?
Me perdi a contemplar a manhã, está linda hoje...
Me diga o que vê.
Os lírios estão bailando ao ritmo da brisa, o capinal aplaude enquanto os pássaros se deleitam a cantar. Os girassóis tornam buscando o melhor ângulo até que a encontram. Mas o verdadeiro baile é em homenagem ao teu cantar!
Me ajude, preciso de suas mãos. Mamãe, onde está o bordado que fiz?
Em cima de sua cama, (replica a mãe que prontamente atende intentando ajudá-la) e espantada diz: Ah! Professor! Fique à vontade!
Muito grato.
E quando vejo o bordado há um emaranhado de fios e cores e algumas gotas de sangue (da agulha que insiste em pinicá-la), mas o que pode manchar uma obra de arte dessas? É como ela imagina o seu mundo tão desordenadamente organizado, tão confusamente colorido que me é dado. Contemplo seu olhar cheio de vida e tão perceptível que em face a sua cegueira enxerga tão bem o mundo.
Sou apaixonado por ela, mas minha paixão com certeza tiraria a cor do seu mundo, por isso sigo a cantar em silêncio meu amor por ela e torno ao meu ofício de professor de braile. Tenho a plena certeza de que Brunette há de descobrir um mundo paralelo mas a delicadeza de seu universo não será contaminado.