MEU DIÁRIO (Parte 17) 1980

AQUI AS PESSOAS PODERÃO CONHECER A HISTÓRIA DE ALGUÉM QUE NÃO SE IMPORTA DE EXPOR SUA VIDA. AQUI TEM HISTÓRIA DE UMA GAROTA NORMAL. MUITAS PESSOAS NASCERAM, MORRERAM, CHORARAM, RIRAM. AQUI VOCE SENTIRÁ A EVOLUÇÃO DO PAÍS, DE SERES HUMANOS. MUITO SOFRIMENTO ENVOLVENDO DROGAS, ASSASSINATOS, AIDS, PRECONCEITOS, OPRESSÃO POLICIAL E TUDO QUE VIVI NESSES ULTIMOS 30 ANOS. VÃO RIR MUITO DOS ERROS DE PORTUGUES QUE PRESERVEI. Não deixe de ler os dezesseis primeiros capítulos.

PARTE 17

Diário, hoje é dia 21 de junho de 1980. São 2 horas da tarde. O Bem acabou de sair, veio almoçar e colocou um monte de defeito na comida. Disse que o peixe tava sem sal. Vá a merda, só é colocar, melhor se tivesse com sal demais. Ando meia sem paciência, será que todo casamento é isso? Eu vivo assustada se o que vou fazer vai agradar ele, antes eu quando via ele da janela chegar, me dava uma alegria que eu ia até o elevador esperar ele. Agora quando vejo ele chegar, já fico pensando no que ele vai botar defeito.

Ele ta insuportável. Diário, ando preocupada com o Mingo. Ele anda emagrecendo demais e meio triste. Ele disse que hoje vem aqui pra falar comigo. A Suzel almoçou e dormiu. A Selma foi pra tia Mercedes. Vou limpar a casa e esperar o Mingo, depois falo mais ta diário?

São 2 e 16 da madrugada. Diário! To abismada... diário o Mingo disse que ta com aquela doença a tal da aids, meu deus, ele disse que não tem cura que ele vai morrer. Ele não deixou eu beijar ele. Disse que isso pega. Ele ficou longe de mim, ele perdeu toda vontade de viver e disse que só tem medo de sofrer. Falou que os médicos disseram que tem um tratamento. Ele disse que não vai fazer pois é só pra prolongar o sofrimento. Que não tem cura. Eu chorei tanto e ele disse que não queria ver eu assim, disse que é responsável por tudo, ele disse que transou com centenas de pessoas e nunca usou camisinha com ninguém. Ele disse que vários amigos nossos estão com essa doença, mais um não fala pra o outro e continuam transando sem usar e tem uns que falaram que já que estão condenados que iria levar meio mundo com eles também. Ele disse que tem uns caras que querem sair com ele, e caras com aliança de casados e não querem usar camisinha. Ele disse que está ate evitando sair e transar. Meu deus diário. Briguei com ele e disse que se os médicos falaram pra ele fazer tratamento, que ele ia fazer, senão eu ficava de mau dele para sempre. Ele riu e disse que não seria tão pra sempre assim, que logo ele morreria. Diário, apesar dele tentar disfarçar, sei o quanto ele ta assustado. Ele disse que meus tios nem sabem ainda, que ele contou pra mim e só eu iria ficar sabendo.

Quando ele ia indo embora o Bem chegou. Ele se despediu e assim que saiu o Bem como que tivesse adivinhado falou, que era melhor evitar que o Mingo fosse em casa que tava saindo uma doença de viados e que essa doença transmitia até no ar.

O Bem disse que ia sair de férias e que iria praticamente se mudar pra Itapecerica pra adiantar a casa.

Perguntei como assim? Ele falou que iria ficar lá pra economizar com gasolina de ficar indo e vindo.

Achei certo, afinal estamos economizando tudo. Jantamos e fomos dormir.

Eu não consegui dormir, passou pela minha cabeça tudo que vivi com o Mingo. Nós vivia aprontando com todos. Sempre falamos com os olhos, bastava um olhar pra o outro e a gente entendia.

Lembrei do dia que o tio Zé Gonçalo ficou sabendo que o Mingo era bicha e correu atrás dele com o facão, lembrei quando a gente fazia Vieira de Carvalho caçando bofe. A gente era tão feliz, achava que era eterno tudo aquilo.

Lembrei que eu queria namorar com ele...Ainda bem que isso não aconteceu. Será que quando eu beijei ele, ele já tinha a maldita? Meu deus! Será?

Esse pensamento me atormentou e assim o dia amanheceu. O Bem foi trabalhar e eu fiquei perturbada, tanto que dei um pulo na Santa casa que é aqui pertinho e perguntei pra o médico. Ele disse que não. Tudo estava em estudo ainda. Ele disse que o mundo está se alarmando com isso. Disse que nem sabem se é uma doença exclusiva dos homossexuais. Eu falei se ele tinha certeza que não transmitia com beijo. Ele disse que seria uma possibilidade muito remota. Que se esse beijo fosse um chupão ou se minha boca tivesse alguma lesão, isso talvez fosse possível. Agradeci o Dr que me tranqüilizou e disse que se eu estivesse tão preocupada assim, deveria fazer os exames. Eu ri e falei aliviada. Que não seria possível. Se fosse assim eu não teria pegado nada.

Fui para casa e passei no parquinho com a neném. E me senti aliviada lembrando do dia que beijei o Mingo. Ele mal tocou em meus lábios e não tinha nenhum machucado na boca.

Puta que pariu, ainda bem que ele não foi alem, porque tudo que eu queria aquele dia era ir muito alem, e se tivesse rolado, talvez eu nem tivesse usado camisinha. Meu deus? Meu primo morrendo e eu tão egoísta quase que pulando de alegria por não ter transado com ele. O ser humano é monstruoso e insensível mesmo.

Diário vou parar de escrever. Cheguei do medico e nem tem almoço pronto e o Bem daqui a pouco vem almoçar, to morrendo de sono. Até.

Diariooooo! Dessa vez demorei mesmo a te falar as novidades.. hoje é dia 29 de setembro de 1980. são 16 horas e 28 minutos. diario, o mundo deve estar acabando. Com a suzel tudo bem, está linda e fala quase tudo. Eu e o Bem estamos na mesma, apesar desses dias ele ter maneirado um pouco, ele vai sair de férias e na ultima briga que tivemos eu disse a ele que esses dias vamos ficar um mês sem se ver e não queria ficar perdendo tempo com brigas. Eu disse que amo ele demais mais não sou de ferro e não quero passar a vida brigando com ele. Falei que casamento pra mim, era união e não guerra.

Diário, deixa eu tentar te falar tudo o que aconteceu esses quase 3 meses. O Mingo foi internado e chamaram a família, agora todos sabem o que ele tem. A família ta desolada. O dia que fui visitar ele, tive que usar uma mascara, perguntei pra infermeira o porque disso já que falaram que foi comprovado já que não se transmite a doença no ar. Ela explicou que não era para me resguardar e sim o paciente. Disse que a imunidade dele era baixa e que ele não tinha anti corpos para se defender de vírus. Pelo menos foi isso que entendi. Coloquei a mascara e um avental e entrei. Eu o abracei e ele desvencilhou. Disse que tinha medo de me contaminar. Eu brinquei e falei que a contaminante ali era eu. Que eu era um monstro contaminador. Ele riu e a enfermeira disse que nunca tinha visto ele rir e que ele tinha um lindo sorriso e era mais lindo ainda sorrindo. Eu falei pra ela tirar o cavalinho da chuva que aquela bicha era mais mulher que eu e ela juntas. Isso fez ele sorrir mais ainda. Ele sorriu e eu chorei. Agora estava notando o quanto ele havia mudado. Estava magro e a expressão do rosto...Era horrível. Diário esqueci de te falar o porque ele foi internado. Ele estava num barzinho noturno e numa briga ele levou dois tiros. Ele foi internado e com exames os médicos descobriram que ele tinha aids. Mesmo assim ele ainda estava bonito. Fui visitar ele 3 vezes. Minha tia falou que ele quando tinha febre me chamava. O Bem nem chega perto de mim mais. Por ele eu jamais teria ido no hospital ver o Mingo.

Ele recebeu alta e eu fiquei o final de semana na casa da tia com ele. Deixei a Selma com a Suzel. Tive que aproveitar essa semana pois a Selma ia voltar a trabalhar e depois ia ficar difícil eu sair com duas crianças.

O Mingo aceitou o tratamento e estava se recuperando bem. Foi mandado embora do salão que trabalhava e a tia e o tio montaram um salão pra ele na casa deles mesmo.

Com isso ele recuperou a auto estima e até está engordando um pouco. E agora quem está doente é meu primo o Zé. Irmão do mingo e com quem vivi um tempo junto, lembra diário?

O Zé casou, tem um filho e a mulher dele, todos falam que é a minha cara. O Zé sempre foi tão forte, não lembro dele ter nem gripe e agora estava enfrentando uma bateria de exames. A mulher dele tinha ciúmes quando eu ia visitar o Mingo. Mas eu nem ai bicho.

Diário, passou mais uns dias a gente ficou sabendo o que o Zé tem. Ele ta com câncer diário. Aquelas bolas no corpo dele é câncer meu deus! Ele vai operar um no pulmão que está pior mais ele ta sumindo... ele era tão forte e agora...

O Mingo ficou muito abalado com isso, eles eram muito unidos.

Um dia cheguei na casa deles e tinha uns crentes fazendo orações e gritavam para ele se arrepender de tudo que pecou na vida. Eles cantavam, oravam, uma barulheira dos infernos. O Mingo no salão dele de cabeleireiro colocou o som no ultimo volume. Eu entrei e expulsei os crentes todos. Mandei eles caçarem o que fazer. Pra parar com aquela putaria de gritos e se eles achavam que deus era surdo. Eu disse que se eu fosse deus eles estavam era perdidos. Eu iria cortar as línguas de todos e mandar ir se fuderem. Os crentes saíram falando que o diabo estava dentro de mim. Detalhe diário, minha tia, o Zé e a mulher dele, são crentes, mas quando os crentes saíram, eles riram porque realmente aquela gritaria estava perturbando.

Diário, os dias passaram, o Zé foi internado e depois recebeu alta. Depois da operação ele piorou e os médicos desenganaram ele. Deram alta pra ele morrer em casa. Ele antes pesava 98 quilos e tinha 1 metro e 92 e agora estava com 60 quilos já. Ele estava horrível. Aquelas bolas no corpo inteiro. Diário, essa doença vai te matando mais você fica consciente o tempo todo. Te juro que eu preferia que ele estivesse inconsciente.

Um dia ele disse que estava com vontade de comer feijoada. Mas como? Ele só tomava liquido pois o câncer tomou conta da garganta dele, até a vós dele estava sufocada. Mesmo assim pedi a tia para fazer. Enquanto estava sendo preparada a feijoada, parece que ele comia o aroma. Ele engolia água da boca e até fechava os olhos.

Me tranquei no banheiro e chorei muito esse dia. Quando estava pronta a mulher dele foi dar na boca dele a feijoada. Ele pegou só um grãozinho e passou horas enrolando com a língua o feijão. Depois riu e falou estar satisfeito. Passou dias assim ele tinha época da melhoras e pioras. Os crentes ainda ia lá, só que quando eu estava eles oravam bem baixinho e isso sim fazia bem ao meu primo. Diário, vou parar um pouco e depois falo mais.

Diário, hoje dia 2 de outubro de 80 7 horas da manhã... Esse mês faço aniversario dia 26/10/80 vinte anos...Não vejo motivos pra comemorar. Hoje o Bem foi pra Itapecerica, e eu ando me sentindo tão só.

Mas tudo bem, ele precisa terminar nossa casa. O contrato do apartamento vence mês que vem e até lá precisamos estar com a casa pronta. O aluguel vai ficar muito caro. O Bem deixou um dinheiro pra eu ir visitar o Zé. Ele anda mais calmo em relação eu ir ver meus parentes doentes. Antes ele achava que eu ia pegar toda doença e passar pra família. A Selma ta entrando no trabalho só na parte da tarde. Eu vou correndo ver o Zé e tenho que voltar antes dela ir. Vou me arrumar

Hoje dia 8/10/80 nossa diário! O Bem faz quase uma semana que foi pra Itapecerica e só ligou uma vez pra saber se tinha chegado alguma correspondência pra ele. Nem perguntou como a família tava, credo, como somos diferentes, e eu aqui, morrendo de saudades dele.

Diário, esses dias como se não bastasse tanta doença na família, apareceu um carocinho no pescoço da Suzel. Corri no medico e ele disse que era um cisto. Tinha que operar mais era uma coisa muito simples. Mesmo assim eu to apavorada, é tantas doenças e eu choro dia e noite. Nem deu tempo de falar com o Bem, ele desligou o telefone rápido. O Zé esses dias está melhor. O Mingo parece que não tem doença nenhuma. A bicha está caindo nas baladas todos os dias e o ruim é que a tia disse que ele ta misturando bebida com os remédios. Disse que o Zé sente falta de mim, mais agora com esse problema da neném eu não posso ir sempre pra lá. E a Selma ta trabalhando direto e eu tenho que ficar com o Ricardinho também. Vou limpar a casa enquanto Suzel ta dormindo.

Diário, hoje dia 20 de outubro eu estou feliz. Minha filhinha operou dia 15 e hoje eu trouxe ela pra casa. Ela está ótima e danada que só. O Bem veio e buscou a gente no hospital. Brigou comigo por não ter dito que a neném tava doente. Mas ele não deu tempo.

Ele passou no mercado na volta do hospital e comprou um monte de coisas. Ele esqueceu que meu aniversario é agora dia 26. ele voltou pra Itapecerica e disse que qualquer coisa pra eu ligar.

Sabe diário, eu percebi uma mancha no pescoço do Bem e ele disse que se machucou com uma ripa que tava colocando na laje... Sei não, pra mim o nome dessa ripa e rapariga...

Mas eu estou tão preocupada com minha filha que nem quero pensar nisso agora. O importante é que ela está bem. CONTINUA NA PARTE 18.

ELISABETHDOVITAL
Enviado por ELISABETHDOVITAL em 07/11/2009
Código do texto: T1910209
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