Dia chuvoso

Morri. Já se passou um dia. Foi ontem, as 3 horas da madrugada. Madrugada esta, ventosa, a chuva gritava no telhado me chamando; estava morrendo. Na rua, as luzes amarelas desfocadas iluminavam os bosques. Verdes, alegres, dançavam. Lembro de tudo, não sei como morri. Estava deitado lendo Judas, o obscuro. Outrora, estava morto. Era o que diziam. "Morreu lendo, pobre jovem. Eu não sabia que estava morto, não vi nada. Agora me surgiu uma dúvida; estava eu vivo, agora estou morto. Pareço está vivo, no entanto, estou morto. Vinte e um de março, não lembro o ano. Um ano no futuro, um ano no passado. Não sei, mas aconteceu. Mas ele estava tão vivo há pouco tempo... Pois é, agora morreu. Porque é isso que acontece quando se morre; tem que se está vivo. É isso mesmo, para morrer tem que primeiro está vivo. E tem de se está morto para viver? Não seja idiota. A morte não me encontrou, e eu não encontrei a morte. Um desencontro fatal!

Acontece que acordei cedo. Levantei, lavei o rosto, tomei café, coloquei música e saí para passear no bosque. Chovia. Voltei já era tarde, quase noite. Vi alguns documentários, jantei, deitei na cama, comi o livro até tarde. Peguei no sono, e nisso, a morte me pegou. Estava ela, à espera? Soubesse eu, não teria dormido. Mas como saberia? A julgar também, ela teria vindo de qualquer modo, não sei. Só sei que ela me abraçou, um abraço aconchegante, quase solitário, carinhoso, cativante, amável. Nem me deixou terminar meu livro... Estou triste por isso. Estava ouvindo All I Need...

Meu rosto está pálido. Camisa preta, como de costume. Símbolos pendurados no pescoço, caveira... É, nos remete a igualdade... Cabelo preso. Não costumo dormir com ele preso. Calças ! Ufa!!! Ainda bem. Costumo dormir sem. Seria uma vergonha ser encontrado assim. Obrigado, minhas calças. Janela aberta. Vento sopra. Estão retirando-me do local do assassinato. Sim, a morte assassinou. Estava escrevendo um conto, ficará inacabado. A tudo que escrevi, espero que haja um Max Brod para mim...

Dia chuvoso... Como sempre. Dias assim me inspiram! Nem acredito; preparam uma festa para mim! Hoje é o meu funeral! Estou ansioso. Tamparei os ouvidos quando o padre começar a falar. Caixão preto. Escolheram bem. A vestimenta também; camisa da minha banda favorita, colete, calça larga ( não gostei ) preta também. Sapatos ( meu All star gasto). Meus objetos pendurados no pescoço, estão lá. Cabelo para trás, mãos no peito ( convenção dos mortos a séculos). Ao lado, no cantinho, objetos que eu gosto; Livros( agora sim poderei ler em paz sem nenhum barulho) amuletos, disco de vinil. Pink Floyd, Raul.( Na pré-história eles tinha o costume de enterrar seus entes queridos e junto os objetos que ele cultuava, numa forma de eternidade simbólica). E também, ela lembrou ! Minha grande amiga lembrou! Lembrou de juntar com do morto, um rádio tocando Rock N Roll ! A bateria deve durar uns dias. Ouvirei até a eternidade. Também um bloco com lápis, senão não teria sido possível escrever esses relatos agora. Muito obrigado, minha amiga!

Pessoas passam, me olham profundamente através da vidraça embaçada do caixão. Não consigo ver direito quem é. Talvez nem conheça. Talvez seja só um idiota curioso, olhando um outro idiota morto, vencido não sei pelo o quê. Não bebia, não fumava, não ia a festas, nem a igrejas. Não sei o que me levou a este fim tão feliz. Alguém chora, outro sorri escondido. Tem vinho tinto, torradas molhadas, fotografias rasgadas, tanto Argentino soa alto. Me pergunto, quando acabará esta festa! Nunca fui a uma festa, a não ser essa. Não trouxeram flores. Cadê minhas flores! Pensando bem, não gosto muito de flores, são para mortos. Uma criança pergunta se eu estou ouvindo. Penso, que criança danada! No momento logo parei de xingar o moço que esbarrou no caixão. Ah ! Jovem, tire a mão do vidro! Vai borrar ainda mais. Pessoas perambulam... Chegam até o caixão, fazem um ritual sagrado, sussurram palavras que mal consigo ouvir... Espero que tenho falado alguma verdade, senhora de chapéu branco ( do contra, pois todos os outros estavam de negro). Esse é o momento que lembro de todos, não são todos que lembraram de mim. Porque muitos ali, nem ao menos conhecia. Outros, há muito tempo não os viam. Mas tire a mão do vidro. Intimidade é essa? Está tocando Bitter Sweet Symphony, boa música. Minha amiga escolheu bem! Que foi moça, para de me olhar assim dessa forma sedutora. Que audácia! Droga, droga! Tire a mão.

Já se passaram algumas horas. Vêem em direção a mim quatro homens, grandes. Num brusco movimento, levantam o caixão. Oh, como levantam alto! Caminham, uma multidão nos seguem. Pela primeira vez, pessoas estão me seguindo, parecem se importar. Saí daquele lugar. Já estava ficando chato. Entramos por um portão, estatuetas me cercam. Pararam. Parece que chegamos ao encontro. Colocam-me ao chão. Mais uma vez, borraram a vidraça... Sou vou perdoar porque me carregaste. Um cachorro se aproxima, lambe a vidraça... Era só o que faltava! Ei amigo, não sou de comer, vaza! Amarram duas cordas ao lado do caixão. Sinto descendo, está ficando escuro, as pessoas olham de cima, eu as olho de baixo. Bom, agora vou ler meu livro e ouvir minhas músicas.

Tahutihator Frigus
Enviado por Tahutihator Frigus em 21/03/2017
Reeditado em 22/03/2017
Código do texto: T5948289
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