O conhecimento que sabota o sistema

Para formigas. O sistema funciona para formigas. Elas trabalham coletivamente, obedecem uma hierarquia. Vivem muito bem organizadas no formigueiro e são plenamente adaptáveis a qualquer tipo de acidente do destino. Se reorganizam socialmente e sobrevivem independente do pote de açúcar estar aberto em cima da mesa ou não. Para abelhas também, o sistema funciona. Todas dão duro pela rainha, produzem litros de mel e ainda tem a responsabilidade de polinizar o mundo. Possuem um sistema coordenado de defesa da colmeia e ataque ao inimigo. Trocam a vida por uma ferroada, que sozinha não é mais que uma dor passageira. Formigas e abelhas nascem com um conhecimento acumulado que permite que a espécie se perpetue eternamente, e se adapte as intempéries sem que isso ocasione uma grande mudança em sua sociedade. Parecem satisfeitas com isso. O homem não. Ele não consegue viver sob um sistema. Com o passar do tempo, e a aquisição de conhecimento, o homem se torna um indivíduo único, rei de si mesmo. O conhecimento transforma e re-significa a vida social a ponto de em algum momento comprometer todo o funcionamento do sistema ou até levá-lo ao colapso. Neste contexto o conhecimento assume a condição de fator transgressor, subvertendo o sistema que proporciona ao indivíduo acesso ao mesmo. No fim seria o conhecimento responsável pelo interrompimento de um fluxo social que pretende se perpetuar. Por isso que adquirir conhecimento é difícil, e para alguns um desenvolvimento doloroso. O processo de mudança desencadeado pelo conhecimento é irreversível.

Quando falamos em estimular este conhecimento é preciso que o professor tenha capacidade de distinguir este conceito de doutrinação. Esta distinção é que vai garantir o essência libertária que só o conhecimento proporciona. A veia questionadora que o conhecimento faz saltar leva o individuo a um exercício constante de desconstrução. Temos aqui três conceitos que necessitam ser desconstruídos: professor, estimular e aprender. Sendo o professor colocado na posição de guia entre o aluno e o conhecimento, ou mediador, não estaria ele assumindo o papel de controlador de marionetes? Não seriam estas novas nomenclaturas para um mesmo sentido: autoridade? Seria possível exercer a autoridade de forma justa e não abusiva? Há quem possa usar o argumento da “guiar com responsabilidade”, gerando assim uma nova questão acerca do que é ser responsável, que pode nos levar a eterna discussão da “ética”, da “moral” e de “valores”, colocando-nos num rodamoinho que pode correr em círculos infinitamente até que se chegue a lugar nenhum com mais perguntas do que respostas. Então a função primordial do professor poderia ser não ser?

Neste sentido é preciso dizer que o professor tem que ter consciência de que o conhecimento não é algo que se adquiri ou se transmite. A escola precisa entender que além de um valor intangível, o conhecimento em si é algo intangível. Conhecimento é algo que se constrói no campo do abstrato sem o menor comprometimento com o resultado. Tendo em mente que também não é uma ciência exata, não deve ser tratado como tal. Se sim, corre o risco de ter um fim específico e doutrinário, invertendo todo caráter de expansão e liberdade de sua essência. Os tijolos para esta construção vem de uma característica essencial para a sobrevivência (ou não, quando mal explorada) do ser humano: a curiosidade. Então podemos refinar ainda mais este conceito e, apoiado em Fedro, dizer que o conhecimento se revela. Sendo a experiência de vida humana uma forma incontestável de conhecimento, pode-se dizer que ele vai aflorar e apontar para algum sentido independente de ser estimulado, sendo ele inevitável e independente. Logo estimular o indivíduo deixa de ser determinante para que ele amplie seu conhecimento, e aprender vira um termo que não se aplica num processo que não tem finalidade definida.

Pensando que o conhecimento ilumina, ele ilumina alguma coisa. Chegamos ao termo que não se explica em si, mas se complica: coisa. O que é a coisa que o conhecimento ilumina? Uma sombra? Se tal sombra, não for só um sombra, estaria ele iluminando as dúvidas? Seriam as dúvidas que o conhecimento ilumina a mãe da curiosidade? As respostas para estas perguntas são um questionamento natural ao sistema e todos os seus agentes, questionamentos que vão além do porque ou de qual a função, se direcionando no rumo do “para que ter conhecimento” e o que é “ter conhecimento”.

Pensar, consciência e impulso

É inegável que a sedução do conhecimento é irresistível. Afinal ele liberta, constrói, emancipa. O conhecimento argumenta, soluciona, vence. Estamos agora falando de desejos e vontades incrustados em todos os níveis da sociedade, alguns não ligados ao conhecimento. Uns querem saber por status, outros por necessidade e um tanto por prazer. Quando pensamos nas vantagens que o conhecimento pode prover assumimos que existem desvantagens, e que o conhecimento pode promover desigualdades e injustiças. Em contra partida se espera que ele seja capaz de estimular a sensibilidade e a emoção. Com ele pretende-se frear alguns impulsos, e impulsionar outros. É a partir dele que é possível compreender que prós e contras sempre existirão. Também é com ele que acredita-se ser possível exercer o direito universal à escolha. Escolha esta que esta intimamente ligada a consciência, colocada aqui como efeito do pensar e inibidora do impulso em nome de uma racionalização gerada pela razão dura que o conhecimento impõe em alguns casos. Inibir o impulso pode também significar limitar a curiosidade, interromper o sentimento e controlar as emoções.

Como resultado o que podemos ter é a banalização de sentimentos, emoções e do infinitamente citado conhecimento, que passa de cura para doença sem que o paciente possa controlar esta transição. Ao pensar o conhecimento como cura e a ignorância como doença, como faz Nietzsche e Platão, deixamos de pensar na liberdade para pensar no efeito. Como efeito, a cura de uma doença traz uma sensação inicial de prazer e alívio, que se esvazia com o passar do tempo, relativizando o remédio. O passo seguinte é a consciência liberar todo aquele impulso preso com tamanha voracidade que sentimentos e emoções se sobrepõe a razão e subvertem o conhecimento como um elemento que não complementa mais o indivíduo, apenas causa um bem temporário. Se considerarmos que não existe conhecimento pleno, e que nunca vai haver cura completa, sendo o tratamento uma constante ininterrupta, então podemos cogitar a ideia de que com a morte certa o conhecimento se torna irrelevante na busca por uma liberdade (emancipação) que nunca virá, já que o fim é inevitável. Voltamos assim ao questionamento mor: de onde vim e para onde vou? Uma pergunta que certamente esta para além do que o conhecimento pode proporcionar, e a dúvida pode levar a uma estagnação que retorna a doença e, como efeito, irá perpetuar a ignorância baseada em crenças religiosas e alegorias que podem iludir a consciência e comprometer o pensar, reduzindo assim o conhecimento a algo inquestionável e mensurável, que ele não é.

Ainda temos que considerar que o os efeitos do remédio são diferentes em cada indivíduo, que é único. Isso significa que a padronização do tratamento não produzirá o efeito esperado e não terá aceitação plena dos envolvidos no processo. Logo alguém vai ficar de fora, não será curado e espalhará a doença. Neste caso o conhecimento passa a ser um fator de distinção, opondo quem tem e quem não tem, antecedendo um desastre social. Isso se refere a homogeneização do conteúdo e a estrutura escolar vertical. Sendo o conhecimento um elemento isento de regras e condições, que leva a emancipação, um ambiente enquadrado e inquestionável não será capaz de libertar, mas vai sim inibir qualquer tentativa de libertação. Com isso o elemento que dá a vida, conhecimento, também a retira. A busca de uma motivação externa, como o vestibular ou a aprovação (na matéria ou social), coloca o conhecimento como condição para um objetivo específico, deixando de lado seu caráter primordial de liberdade e emancipação.

Por fim podemos concluir que não existem conceitos rígidos que o conhecimento não possa amolecer. Ao contrário, a super-flexibilidade deles é que legitima ações que podem tanto libertar e emancipar como prender e inibir. Professor e escola devem estar preparados para a constante readaptação que a super-flexibilidade e a independência exigem. O que permite tal super-flexibilidade é o conhecimento, que também respondem pelas emoções e sensibilidades, impactando diretamente nas vontades e desejos. Estando todos estes conceitos interligados, a falha, ou subestimação, de algum deles vai comprometer todos os outros e, consequentemente, criar indivíduos com dificuldades em concluir o ciclo de evolução que espera-se de todo o ser humano. Sendo esta expectativa externa, todo indivíduo estaria livre de qualquer tipo de culpa de não cumprir uma vontade e um desejo que não são genuinamente seus.