O DRAMA DIÁRIO DAS MARIAS

Tu vieste até mim sem nada em mãos. Cheguei a parafrasear mentalmente Caetano Veloso dizendo: “caminhando contra ao vento, sem lenço e sem documento num sol de quase dezembro”. Toda vida, para mim até então, era uma quinta-feira tranquila. No entanto, quando tu aproximaste cheia de lama e suor, pude ver que não era um dia tão normal. Tu, Maria, Maria de Deus, Maria de Bento Rodrigues gesticulavas de uma forma descontrolada. E tu no desespero não consegui se formar frase alguma.

Mas não era preciso de dicionário algum para decifrar o que tu dizias. Teu corpo coberto por lama e tua pele repleta de arranhões já demonstravam algo ruim. O pior mesmo veio quando tu se acalmasse. Tu relataste o sofrimento naquela quinta-feira, cinco de novembro. Tu disseste repetidamente: “A lama levou tudo”.

Só que teu sofrimento ainda não terminou. Teu filho, filho único, havia se perdido na imensidão daquele rio. Não o Rio Doce mas sim, um rio de lama. Causado pela irresponsabilidade da Vale do Rio Doce, que naquele momento deixaste de ser doce. A Vale ali era causadora da dor de Maria, de tantas Marias. E sabe-se lá quantas Marias, quantos Josés perdeste. Filhos, parentes, bens ou até mesmo a vida por causa deste erro fatal.

Maria pensou da mesma forma que eu, que as dificuldades no mundo não chegaram o fim após a tragédia de Bento Rodrigues. Tu pensaste assim: poderias encontrar teu filho, reconstruir tua vida voltando a ser feliz, mas o teu coração saberia que sempre existiria uma Maria no mundo passando por momento semelhante. Seja em Bento Rodrigues, com o rompimento de uma represa; no Brasil, pelo tráfico; na África, pela fome; ou na Europa, pelo terrorismo.

Caetana Lisboa
Enviado por Caetana Lisboa em 24/03/2017
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