Copenhague Zero Grau - Lápides

A Embaixada Americana e a Embaixada Russa são separadas pelo cemitério dinamarquês. Os americanos construíram um prédio modernoso, os russos alugaram uma casa nobre, antiga e branca, coalhada de portais dourados. Burguesa.

O cemitério é limpo, as sepulturas bem cuidadas. Não é triste, de maneira nenhuma. No verão, tem flores, tem verde. No inverno, a neve demarca as lápides, esconde os nomes dos falecidos, e aquilo mais parece um bolo de aniversário. Véu de noiva. Em junho, o tempo é bom, há velhos tomando sol nos bancos aqui e aqui, e até casais de adolescentes se namorando sem muita preocupação com quem passa. Copenhague, Dinamarca, Escandinávia.

No cemitério estão defuntos de mil oitocentos e tantos, mortos das duas Grandes Guerras e das pequenas batalhas cotidianas. Nenhum deles tem medo dos vivos nem se preocupa com a atual situação geográfica do cemitério. Não há mais por que: nem mesmo os dois Superpoderes já lhes podem fazer mal.

Daqui a anos, aquela Karina, por quem se suspira nessas tardes friazinhas, deixará suas tenras carnes de hoje apodrecendo neste bonito cemitério. Mas ninguém ousa preveni-la, eu é que não posso, sou interessado, e os sábados e domingos passam um atrás do outro, sem que nada a distraia de seus puros desígnios, a solitária. É uma pena! Há tanta coisa errada que podia ser bem feita a dois! Daqui a anos, ela terá um desses nomes comuns por sobrenome: um Petersen, um Jensen ou um Jakobsen, se se casar pela Lei. Se ficar solteira, fica com esse Olsen, que é seu, misturado aos dos heróis das guerras, gravado numa lápide qualquer, onde, talvez, nem se meta uma cruz. Os mortos daqui não são obrigados a ter religião. E, para rezar por ela, quem sabe, aquele que hoje suspira e apela pelo telefone público, há de passar a vir por obrigação ao cemitério. Até o dia em que ele também passar a não ser mais que uma lápide singela desta cidade de silêncios, já sem se preocupar tampouco com os dois Superpoderes, a limitação das armas atômicas ou com os problemas dos refugiados políticos.

(Copenhague, Dinamarca/28/08/1977)

William Santiago
Enviado por William Santiago em 24/02/2017
Reeditado em 16/10/2020
Código do texto: T5922599
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