Projeto de bem coletivo

Ricardo vinha se arrastando pela avenida. Com movimentos repentinos desviava de um, do outro, do poste. Passou pelo sensor da porta, depois a catraca elétrica, ponto eletrônico. Estava sentado no seu cubículo antes mesmo que alguém tivesse chance de lhe desejar bom dia. Ligou o computador, afastou a cadeira e olhou para fileira de divisórias. Um capataz vinha passando, olhando de tela em tela. Se voltou para a sua, colocou a cabeça no automático, e começou a programar. A tacha de digitação tinha que ser superior a duzentos caracteres por minuto. Pensar era um luxo que ele não podia se dar.

Copia daqui, cola lá. Manter as linhas de comando, re-escrever as linhas da legenda. Mudar cores e alinhar de acordo com a categoria. Salvar em arquivo HTML. Passar para frente. Era tudo muito simples. Um exército de apertadores de botão do Séc. XXI. Levantou levemente da cadeira e olhou por cima de sua cabine e falou sussurrando. “Ei, garota, qual o seu nome?” “Isabela”, respondeu ela assustada. “Cadê o Mateus?”, ele perguntou num tom de preocupação. “Não sei, hoje é meu primeiro dia”, disse. Ele olhou para os lados, ela voltou a digitar. O contador de caracteres de Ricardo começou a apitar, e ele começou a correr com o dedo.

O sinal do almoço tocou, e todos sairão de forma organizada rumo ao elevador. De trinta em trinta eles subiam para o andar refeitório. Pouco se olhavam e ninguém falava. Ele sentou num lugar vazio no fundo do salão. Comia com a cara apontada para bandeja quando foi interrompido por um tímido oi. “O que você quer?” Agora ele estava assustado. “Por que ninguém fala aqui?”, perguntou Isabela tentando falar o mais baixo possível. “Por que não há nada a ser dito”, emendou ele num tom de cala boca. Diante do silêncio generalizado foi o que ela fez. Quando olhou para frente percebeu que todos comiam quietos, olhando para baixo.

No mesmo movimento coletivo mecanizado todos voltaram aos seus postos depois do toque da sirene. A tarde se esvaia num silêncio monótono. Copia daqui, cola lá. Manter as linhas de comando, re-escrever as linhas da legenda. Mudar cores e alinhar de acordo com a categoria. Salvar em arquivo HTML. Passar para frente. Para ir ao banheiro era preciso acionar um comando que o colocava numa fila. Quando o capataz se aproximasse pelo lado esquerdo você podia se levantar e ir. Ele não o deixava sozinho nem nos piores momentos. Poucos usavam este “serviço”. Alguns preferiam passar o dia sem comer e beber nada, outros tomavam remédios para não precisar usar o banheiro.

Um barulho agudo cruzou a sala e os computadores travaram. Todos deram uma leve distância para a mesa. Uma gangue de capatazes começou a inspecionar equipamentos e revistar pessoas. Dois deles se aproximaram de Ricardo. Ele levantou e foi revistado. Tudo que estava sob sua mesa foi recolhido e ele com mais alguns seguiram os capatazes. Um apito anunciou o fim da vistoria e todos voltaram a seus afazeres. Isabela percebeu um pedaço de papel caído ao lado de sua cadeira. Com cuidado, sem movimentos bruscos, se abaixou e pegou a folha. Abriu e leu: “Você sabe para onde vão estes dados? Você sabe para quem trabalha?” Quando ela deu por si o capataz já estava a seu lado. Sem se dar conta de porque entregou o bilhete para ele antes que ele pedisse.

A luz vermelha acendeu no canto da tela. Os computadores foram desligados e todos sairão ordenadamente. Isabela saiu do prédio e foi na direção de uma estação de metrô. Pegou o trem, desceu duas paradas depois e foi para casa. Jantou, tomou banho e dormiu. Acordou com o toque do despertador e foi trabalhar. Chegou cedo para seu segundo dia de trabalho. O cubículo de Ricardo estava vazio. Um capataz veio a frente de um garoto que caminhava com a postura de um cabo que acaba de entrar na corporação. Ele parou na frente da cabine ao lado dela. O rapaz sentou, ligou o computador e começou a digitar. Isabela não falou nada.