Peso morto em CNTP [conto]

Nos últimos tempos tem crescido um sentimento em mim de querer ser abandonado. Acordar e descobrir que todo mundo que um dia me conheceu teve este detalhe menor da vida deletado da memória. Meu número desapareceria do celular das pessoas, meu e-mail nunca mais receberia mensagens e os crianças da rua iriam ter medo da casa abandonada na esquina. Ninguém ia me cumprimentar quando me visse andando até o supermercado, se desse sorte as pessoas até desviariam de mim quando eu passasse. Mas por mais que eu reze, fuja, ou não tome banho, não adianta, o mundo insiste em me atormentar.

O Bar do Jaime não é o lugar perfeito para se esconder, mas diminui consideravelmente as chances de se ser encontrado. É sujo, as bebidas são de segunda e os frequentadores não são exatamente o que uma mãe quer para um filho quando ele crescer. Vai ver que é por causa disso que o Jaime tem essa cara de filho da puta. “Não tem nada para você aqui.” A moral é assim, fascista. “E para o mico?” Ele coloca uma cerveja no balcão. “O mico também quer alguma coisa quente e uns amendoins.” Brotam uma porção de amendoim e uma dose de conhaque na minha frente.

Peguei o jornal e vi alguma coisa sobre empregos não serem mais empregos. O que existe agora é prestação de serviço. Me senti no limbo: se não existem mais empregos também não existem mais desempregados. Não sou nada. Como não tenho CNPJ não sou nem números. As pessoas vão continuar por aí me enchendo o saco, mas o governo parece ter ouvido minhas preces. Mas é sempre bom estar preparado, a qualquer momento ele pode enviar um mensageiro do inferno na minha porta dizendo que devo alguma coisa por, sei lá, ainda estar vivo e não ter um CNPJ.

Se minha leitura tivesse chegado até o horóscopo teria descoberto que hoje não era um bom dia para encontrar pessoas com quem se tem relações sexuais ocasionais (e que meu número da sorte é 13, o que não muda nada porque hoje é 31. Talvez as coisas tendam a acontecer ao contrário para mim). Enfim, não cheguei até o horóscopo, mas a filha do Jaime chegou de não sei onde e passou por mim como um banqueiro que cruza com um mendigo. Me recolho na minha insignificância e continuo comendo amendoim por unidade para o Jaime não me considerar um peso morto e me chutar do bar.

A dose de conhaque começa a fazer algum efeito e aos poucos vou me sentindo melhor. É como se um pavio de esperança se acendesse dentro de mim. Deus envia um sinal através de uma arara selvagem que pula do meu bolso e se transforma em uma cerveja e outro conhaque. A filha do Jaime passa por mim no vai e vem do salão e não consigo arrancar dela nem um olhar de desprezo. O Jaime me dá muito mais que isso. “Na minha época vermes como você sumiam na noite e ninguém dava falta.” “Acho que estou vivendo na época certa então.”

Um grupo de três ou quatro engravatados entraram no bar rindo alto e tomando posse do ambiente e tudo que estava nele. “Põe uma garrafa de pinga aqui.” O velho rabugento redirecionou todo seu ódio para eles com uma cara de “onde você pensa que está, imbecil?” “Não vim aqui fazer amigo. Coloca uma garrafa de pinga aqui pra gente, porra.” O mais parrudinho sacou um Pantanal de onças do bolso e bateu com uma só no balcão. Tinha a impressão de que todo mundo estava parado olhando aquela cena, menos eu que procurava a bunda da filha do Jaime no meio de tudo aquilo. Ele, por sua vez, fez menção de recorrer ao sossega malandro que fica permanentemente ao alcance da mão atrás do balcão. “Não é o suficiente?” O parrudinho libertou mais duas onças. Revelando sua condição de refém do capitalismo cruel o Jaime pegou a pior garrafa de pinga que tinha, abaixou a cabeça, e colocou no balcão junto com os copos sem abrir a boca ou desviar o olhar.

Continuava procurando sem sucesso a bunda da filha dele enquanto os bêbados de butique vivendo uma noite muito louca espantavam qualquer pessoa de bem que quisesse entrar lá. Quando já estava quase convencido de que ela tinha ido embora com alguém que tinha um CNPJ escutei um grito agudo e achei a bunda dela na mão de um dos donos do mundo. Como que por instinto quebrei uma garrafa em um deles que estava mais perto ao mesmo tempo em que o sossega malandro do Jaime acertou o dono da mão no meio da testa. A filha dele veio correndo e chorando na minha direção como uma criança que se perdeu da mãe no supermercado. Abri os braços para segurar ela e alguém me acertou com uma cadeirada por trás. O Jaime pulou o balcão deu um mata leão com cada braço arrastando dois dos trolhas para fora do bar. Depois voltou e jogou os outros dois sacos de estercos na calçada e fechou a porta. Enquanto ele varria os destroços da confusão a filha dele fazia curativos nas minhas costas.