O fim do resto [conto]

No futebol da educação física do colégio o primeiro a ser escolhido não é só o melhor. Ele é o melhor, o mais legal, o mais bonito, com um futuro brilhante, inteligente e o orgulho do Sr. e da Sra. Oliveira. Daí para baixo vem o resto, encabeçados pelos melhores amigos dos melhores, depois um goleiro, alguém que joga mais ou menos mas é chato, e o ruim. Esse é a escória da sociedade, a maçã podre, o menino sem futuro e peso morto. Esse era eu. Deveria ter me matado quando tinha 17 anos. Naquela noite com a Sara, em que ela estava peladinha deitada na minha cama, pronta para o amor, e eu não consegui fazer nada. Aquela deveria ser a primeira e última vez que isso aconteceu. Mas ela estava bêbada, não lembrou do que tinha acontecido na noite anterior, e eu não me matei. Teria poupado minha alma, e a humanidade, de todos esses anos de merda.

Acabei dormindo no sofá assistindo “só é feliz e saudável quem tem…”. Não sou nem feliz e nem saudável. Nem tenho nada. Quem é feliz e saudável nem sabe que eles ficam vendendo estas porcarias toscas na madrugada. Enquanto eu fervia a água para o café me imaginei numa casa grande, com um par de carrões na garagem, num condomínio, de terno, fazendo café numa daquelas máquinas que eles vendem na madrugada. A Sara descendo as escadas com as crianças, desviando do nosso Dachshund, que ia chamar Cofap. Talvez seja melhor eu voltar a dormir assistindo algum programa de igreja. Esse calor é medonho, comecei a suar antes mesmo de começar a viver. O sofá, minha roupa, meus pensamentos, esta tudo ensopado de suor.

Caguei fumando um cigarro e fui direto para o banho. Não adianta colocar o chuveiro no modo verão, a água é quente porque o sol é quente, o tijolo da parede esta quente, o cano esta quente, o inferno esta quente. Depois fiz um café quente, tomei fumando uma ponta que queimou meu dedo, peguei o táxi, liguei o ar condicionado e saí para trabalhar.

Desci a Radial Leste inteira até o centro sem pegar um passageiro. Subindo a Avenida Ipiranga, ali na altura da Praça da República, três estudantes fizeram sinal. “Quanto fica uma corrida até a Barra Funda?” “Pra vocês três?” “É.” “Faço vinte para cada um.” “Tá muito caro!” “É bandeira dois, tem o trânsito desse horário, no taxímetro vai dar mais.” “Tudo bem.” Como cavalheirismo virou machismo, o cara veio sentado na frente e as duas garotas foram atrás. “Vocês cobram muito caro, por isso que todo mundo só pega Uber.” “Se cobrando caro não sobra dinheiro nem para tomar café com leite, se eu cobrar menos só vai ter água quente.” “Mas também, você quer tomar café com leite todo dia?” “Você não?”

Deixei os três na subida da rampa do terminal e fui rodar. Passando na frente do fórum da Barra Funda um engravatado me parou. Entrou no banco de trás meio atabalhoado e ofegante. “Para um pouco antes da saída daquele estacionamento ali. Pode ficar com o taxímetro ligado.” Porque não ficaria? “Nós vamos ter que seguir um carro. Você é taxista, deve ter experiência dessas coisas. Ela não pode perceber.” “Tudo bem.” Não, não tenho direito a uma vida tranquila. Um carro prata, desses grandes de madame, saiu do estacionamento. “Ali, aquele SUV, fica com ele.” O tom dele era de investigação policial que ia dar bosta.

Fomos para as Perdizes. Subimos a rua Tucuna, desembocamos no Parque Antártica e o SUV parou numa farmácia. Uma loira de uns quarenta anos, dessas de fazer muita garota de vinte parecer uma criança, desceu e entrou na farmácia. “É a minha esposa.” “Parabéns.” Comecei a reparar que ele tremia e tinha uma cara que de idiota se transformava em psicótica com o passar do tempo. “Ela quer o divórcio. Tenho certeza que ela esta me traindo.” Parece que essa corrida é uma ameaça aos meus planos de uma vida pacata e tranquila. Me sentia perdendo a chance de dizer: “Você não quer descer aqui e refletir melhor sobre tudo isso? Procura ajuda. Não precisa pagar a viagem. Boa sorte. Até nunca mais.”

“Olha lá!” A loira de cabelos reluzentes e pernas grossas de um metro e meio saiu da farmácia e entrou no carro. “Você conseguiu ver o que tinha na sacolinha? O que ela comprou? Foi muito rápido. Tenho certeza que não foi remédio.” Já não me preocupava mais em responder com a esperança de que isso fosse entendido como um sinal para ele parar de falar e sair logo do carro. “Continua atrás dela. Vamos, vamos.” Agora meus pensamentos já seguiam mais na direção de “puta merda, não quero ter que ir na polícia. Por favor, desce.”

Nos embrenhamos pelo bairro até sair na Avenida Sumaré. Fomos indo sentido Pinheiros. “Se ela esta pensando que vai me deixar fácil assim ela esta delirando. Não sou otário.” Comecei a sentir pânico cada vez que via a cara dele no retrovisor. “Ela me deve, sabia? Sem mim ela não ia ser nada. Agora ela quer me deixar, e ficar com o dinheiro ainda por cima. Ela esta louca. Quem pagou a faculdade de arquitetura em Barcelona? Quem pagou as roupas, as festas, as joias? Ela me deve.” Aumentei o rádio. “Baixa isso cara, por favor.”

Chegamos até Pinheiros. Descemos a Cardeal Arco Verde e o SUV entrou num estacionamento depois do cemitério. “Para na esquina de baixo, para na esquina de baixo.” A mulher saiu do estacionamento, andou uns metros na calçada e entrou numa portinha com várias salinhas de profissionais liberais. “Eu sabia que era aquele filho da puta do psicólogo. Aquele papinho de terapia era só fachada. Ele queria mesmo era comer minha mulher. Vou resolver isso agora.” O cara sacou um trinta e oito, desses pequenos, de dentro da pasta. “Fica aqui esperando que quando eu voltar você me leva para casa e te pago o dobro.” Esperei ele entrar na portinha e fui embora para longe dali o mais rápido possível.