A era da reprodutibilidade técnica avançada

Mirela, Mari, Evandro e Neto estavam ensaiando há semanas. O roteiro era da Mari e do Evandro, e nunca estava fechado. Eles não aceitavam começar a gravar enquanto tudo não estivesse completamente finalizado. Equipe de produção, pós-produção, técnica, tudo definido. Não basta só ter uma super-câmera “D qualquer coisa”, para gravar em HD a beleza de uma pombo cagando em cima de um careca engravatado na Berrini. Tem que ter o som das asas do pombo, tem que ter o barulho da bosta se espatifando na careca lustrosa, dividido em quadros sincronizados com um som angustiante e em ângulos jamais imaginados por Hitchcock. Tem que ter brilho, luz, câmera, ação!

- Vamos fazer um piloto.

- E quem vai editar?

- Eu e a Renatinha.

- Onde? No Movie Maker? Não…

- Ela tá com um canal no You Tube….tudo bem, é sobre moda…..mas são legais, e ela tem mais de mil visualizações em um vídeo já….

- Para com isso…..ela que seja feliz, mas a gente quer fazer uma coisa diferente………..

- Ela disse que topa, é só pôr o nome dela nos créditos…….e ela divulgaria no canal dela também………..a gente faz, se não ficar bom a gente não sobe na net…….

- Tudo bem, mas ainda temos o problema do microfone…...só com o da câmera não dá……

- Para de colocar dificuldade em tudo……...é só um curta de menos de cinco minutos!........você dois estão achando o que?.........que….que….sei lá……..aqui não é o NetFlix!

- Calma……

- Um monte de gente grava com uma câmera pior que a nossa, sem microfone, edita no Movie Maker, ou nem edita, e faz umas coisas muito legais……..faz quase um mês que a gente esta ensaiando, já temos o figurino, a maquiagem, tudo…….vamos fazer!

- Tudo bem, a gente faz um piloto no próximo ensaio.

Cena 1

Resumo - Dois caras estão numa mesa de bar no meio da noite. O número um é um taxista (Mari) e o número dois (Evandro) é um jornaleiro. Eles estão tomando suco e comendo um pedaço de bolo enquanto conversam. A balconista (Mirela) fica no fundo mascando um chiclete e fumando um cigarro vendo TV.

{Som de copos tilintando, pessoas conversando, barulho de televisão e carros passando de fundo.}

[Câmera em plano médio com os dois sentados na mesa em primeiro plano e a garçonete em segundo plano aparecendo no fundo.]

(Taxista) - “Sei que não temos muita intimidade, mas eu precisava conversar com alguém…….é que…..sei lá……ultimamente eu tenho visto tanta coisa……..me faz pensar…...que…...sei lá………...essa cidade…..”

(Jornaleiro) - “Acho que estou entendendo o que você quer dizer……...um tipo de depressão……..todo mundo é feliz menos eu…….algo assim………”

(Taxista) - “Não sei……..acho que as pesso…”

(Jornaleiro) - “O que você precisa é se divertir cara………..pega umas minas fáceis, toma um porre, faz uma merdas……..aqui é a democracia……...curte, se diverte……”

(Taxista) - “Estas foi uma das maiores merdas que eu já ouvi….”

CORTA! CORTA!

- Esta ficando bom……….Mirela, eu preciso que você masque esse chiclete como a Sally Sanders na cena do parque de diversões naquele filme com o John Travolta……você esta no fundo, desfocada, tem que ser bem performático para sair bem………..Mari, seja mais deprimida e menos malandro……..você esta bem Evandro, mas não olha para Mari quando você responde, fala meio de boca cheia, olhando para a direção do barulho da televisão……..você não esta se importando muito com o que ele esta falando……..falem mais alto que não temos mic aqui……...vamos continuar da onde parou……..

Cena 1…...continuação…...ação…….

(Jornaleiro) - “É isso que os homens fazem…….”

(Taxista) - “Esse é o problema……...não aguento mais essa sujeira, essa merda de lugar…….essas vagabundas na rua não percebem que são parasitas?........”

(Jornaleiro) - “Você vive num país livre cara…...se você gosta de homem procure um e seja feliz……..

(Taxista) - “Cala essa boca seu animal…..não sei porque estou perdendo meu tempo com você……..”

Fim da Cena 1

- Talvez tenha ficado legal galera…...vamos arrumar tudo para a próxima……...

Cena 2

Resumo - O taxista (Mari) esta na sala da casa de um vendedor de armas (Mirela). Ele tira uma mala debaixo de uma abertura escondida atrás do sofá e os dois começam a negociar.

[Câmera em plano geral, pegando toda a sala e mostrando toda movimentação dos personagens.]

{Sons de crianças brincando no quintal do vizinho e adultos gritando.}

(Vendedor de armas) - “Eu tenho tudo que você precisa…...armas, munição, coletes a prova de bala……..”

(Taxista) - “Eu quero uma Magnum 44 com seis balas……”

(Vendedor de armas) - “Esta aqui esta belezinha……..robusta, pesada…….1,3kg de pura destruição…….o que ela acertar ela derruba……..”

(Taxista) - “Quanto é?”

(Vendedor de armas) - “Um barão e meio…….”

(Taxista) - “Com as balas?”

(Vendedor de armas) - “A primeira é sempre na faixa…….o que você esta pensando em fazer com isso……….”

(Taxista) - “Nada demais……..aqui esta o dinheiro…….”

(Vendedor de armas) - “O Tito disse que você era taxista……..que só queria se proteger……..se seus amigos também quiserem posso vender para eles também……...mas nada de falar por telefone, a gente combina e você traz eles aqui……e se alguém me perguntar você nunca me viu……..e é isso que vou falar se alguém perguntar de você……..”

(Taxista) - “Entendi, eu sei como funciona…….”

Fim da cena 2

- Não sei isso esta dando certo. Nessa cena a câmera ficou muito longe de vocês……...acho que não esta legal o som……..

- Roda aí na câmera mesmo pra gente ver como ficou………

[Filme rodando]

- O som esta horrível……..parece que é um banheiro…….

- Vamos terminar de gravar……..a Renatinha vai melhorar o som no computador e colocar os efeito……..eu estou achando ótimo……..vou arrumar tudo para a próxima cena………..

Cena 3

Resumo - O taxista (Mari) esta sentado numa cadeira na cozinha escrevendo um bilhete. A arma esta do lado do papel na mesa.

[Câmera em plano americano mostrando o taxista escrevendo o bilhete e a arma. Ele acaba de escrever, coloca a caneta do lado do papel, pega a arma e da um tiro na própria cabeça. A cabeça cai do lado do papel, sangrando, e a câmera vai fechando até focalizar o papel em detalhe.]

{Nenhum som, só o barulho do taxista escrevendo o do tiro.}

(Recado do bilhete) - “Eu não sou viado”

Fim da cena 3

- Adorei!

- Acho que ficou uma merda.

Tags | antimidia, antimidiablog, eder capobianco, experiências literárias, literatura experimental, literatura contemporânea, realismo, fazer um filme, suicídio, homosexualidade, gênero, metaliteratura, violência, produção