Passagem só de ida para o inferno

Aquilo era um velório e estava tão animado quanto um velório pode estar. Os mais próximos lembravam os bons momentos do Carlos. O sucesso nos negócios, a festa de casamento, quando ele tocava baixo com o Blue Moon na faculdade. Por outro lado o resto comentava sem muita descrição que ele não tinha sido o melhor ser humano de todos os tempos. Não tinha sido bom pai, nem bom marido, nem bom com os coleguinhas escola. Drogado, sacana, pilantra. Dane-se, agora tudo isso não importava mais. A Márcia estava sentada numa cadeira em frente ao caixão há horas. Talvez o mais triste aqui seja ver uma mulher vistosa como ela achando que a vida acabou só porque ficou viuva. Será que ela se lembra de quando a gente tinha 13 anos e brincava de inspeção do corpo humano na fazenda do pai dela? O Pamonha apareceu, porque era primo do defunto, e leu meus pensamentos. “Nem parece que ela pariu três pirralhos né não?!” Percebi a mãe dela saindo com as crianças e vi que ela estava sozinha, curvada e com a mão no rosto. “Respeita o momento de dor dela seu animal. Vou cumprimentar ela.”

O salão era grande o suficiente para no meio do caminho eu pensar que não tinha nada para falar para ela. “Você sempre mereceu algo melhor” era tudo que passava pela minha cabeça. Então peguei duas xícaras de chá e me aproximei devagar. “Oi Marcinha, todo mundo aqui acha que você merece uma xícara de chá.” “Obrigado Marquinho. Sei que vocês não eram muito próximos, mas está sendo muito difícil para mim.” Sentei do lado dela e a abracei como um bom amigo querendo confortar uma amiga muito triste. “O mais importante agora e estar a disposição para te ajudar no que for preciso.” Enquanto eu sentia a mais tenra respiração de um abraço fraternal meu pai atirava olhares de ódio e raiva na nossa direção. “Meus pêsames Márcia. Qualquer coisa que você precisar....ficar com as crianças, ajudar na casa......pode contar a gente.” “Obrigada Tio. É bom contar com a família neste momento.” “Marcos, sua mãe esta precisando de ajuda na cozinha. Vá lá e veja o que ela precisa.” Mensagem compreendida. Meu pai fez questão de me acompanhar para longe. “Deixa a sua prima em paz. Tudo que ela não precisa é de alguém como você do lado dela agora.”

Saí procurando alguém para me escorar. Não queria ser encontrado por alguma tia que não via a anos e cair numa sessão de nostalgia sem fim. Vi o Pamonha com a Gil e a Fer fumando um cigarro lá fora. “Agora a gente só consegue se encontrar em velório?” Não entendi porque a Gil estava lá. A Márcia não gostava dela porque virava e mexia ela e o morto estavam na mesma cama. Depois de um tempo ela dizia que tinha dó da Márcia por ela ter que conviver com aquele cretino. E era verdade. Para ela era como se não tivesse acontecido nada. “Vamos beber à morte deste filho da puta hoje!” “Fala baixo, as pessoas estão olhando.” O Pamonha tinha vergonha de tudo, incluindo ele mesmo. Acabei de fumar e sai de perto deles para confirmar que meu pai estava me seguindo com os olhos. Só para fazer ele ir mais longe fui passear pelo cemitério. Me assustava pensar que um dia era meu nome que ia estar numa daquelas lápides. Acendi um baseado e fiquei pensando em como devia ter sido a vida da Ana Paula de Antunes Parada. Loira, bonita, usando um vestido de verão vermelho com uma fita na cintura correndo na praia. 1978 a 1994. Jovem assim deve ter sido um acidente estúpido ou alguma doença desgraçada. Assassinato corre por fora. Pelo menos ela viveu a década de 80.

Virei a esquina no mausoléu do Dr. Camões e dei de cara com o Carlos. Parado. Encostado com o ombro num túmulo. “Pode comer ela. Não vou ficar bravo. Melhor você que o Pamonha ou o Tonhão.” Olhei para o baseado e depois para ele. As coisas tinham que ter alguma conexão. “As crianças tem as avós. Estou preocupado mesmo é com a Márcia.” “Você não vai para um lugar melhor?” “Não sei, ainda não vi a luz. Não deixa ela cair na mão de qualquer filho da puta. Você pelo menos não vai roubar ela nem sacanear as crianças. Não parece, mas você é uma pessoa boa. Sempre foi. Posso ver agora.” “Obrigado.” “Faça ela feliz como eu deveria ter feito.” Ele saiu andando e esmaecendo na velocidade em que eu soltava a fumaça presa no peito. Então alguém me cutucou e foi inevitável o grito agudo e vergonhoso. Era o meu pai. “Se recomponha rapaz! Apaga esta merda e venha acompanhar o cortejo.” Todos estavam descendo a ruazinha atrás do carrinho que trazia o caixão. Queria ter dado uma última olhada no corpo antes de fecharem a tampa e lançarem a pá de cal. Queria ter certeza do que vi.

Estava chegando com meu pai e me agrupando com todos quando a Márcia fez um sinal com a cabeça me chamando para perto dela. O Pamonha e a Gil perceberam e deram uma risada sacana na minha direção. As coisas pareciam que estavam saindo do controle. Sentei na cadeira do lado dela tentando entender tudo que estava acontecendo. Ela chorando, as crianças chorando, os velhos chorando, o padre falando. Eu parecia ser a única pessoa do universo incapaz de derramar uma lágrima. Coloquei a mão na cara e me curvei para baixo para demonstrar meu luto e não precisar olhar para ninguém. Não fechei o olho com medo de ver alguma coisa que me assustasse. Depois de um tempo a Márcia me agarrou, as crianças me agarraram, Meu Deus o que está acontecendo? Como vim parar aqui? Levantei a cabeça e estavam descendo o caixão e todos olhavam para aquela família unida e chorosa. Meu pai lançava foguetes na minha direção com os olhos. Lembrei das últimas palavras do morto: “Faça ela feliz como eu deveria ter feito.” Finalmente comecei a tremer e a chorar desesperadamente.