Manhãs de 2002

Acordei às cinco e meia da manhã. Isto não é hora de gente acordar, é madrugada, ainda esta escuro. Concordo que algumas pessoas acordem esta hora, como, por exemplo, meu avô, que levanta esta hora porque gosta. Ele limpa a gaiola dos passarinhos, joga água no jardim e faz um monte de outras coisas, que eu não quero fazer, porque não quero acordar esta hora.

Eu tinha menos de vinte minutos para estar no ponto e pegar o ônibus que me levaria para faculdade. Tinha meio baseado no meu cinzeiro, estendi a mão e peguei ele. Liguei o som e acendi a ponta. Fumei enquanto me arrumava, peguei uma roupa que estava no chão. Estava usando ela há três dias. Uma calça jeans, camiseta preta do Led Zeppelin, tênis preto com a sola furada, cuecas e meias brancas.

Fazia tudo isso no escuro, a luz agride meus olhos. Nunca ligo a luz depois que levanto. Prefiro ver a luminosidade do dia, acho que as lâmpadas são parte de uma conspiração de oculistas. Sempre que você liga elas quando acorda o olho arde, e cada vez você enxerga menos parte e com letras embaçadas. Primeiro precisa de óculos, depois aumenta o grau e por fim você começa a pingar colírios para não ficar cego antes dos cinqüenta anos. Tem muita gente lucrando com isso.

Sai do quarto quinze para as seis e meu avô falou: “meu filho, você esta atrasado, vai perder o ônibus.” Eu sempre estava atrasado, e nunca perdia o ônibus porque ele nunca saia no horário. Fui até a cozinha e enchi um copo de refrigerante. Tomei em três goladas, entre uma e outra conversava com meu avô. Era gostoso trocar uma idéia com ele de manhã. Ele sempre falava: “meu filho, não toma esta porcaria assim logo que saiu da cama, faz mal” e eu respondia: “eu sei vô, mas estou atrasado, não da tempo de fazer um copo de leite”.

O ponto ficava a três quarteirões e meio da minha casa, levava menos de cinco minutos até lá. Era sempre as mesmas pessoas no mesmo lugar. Digo não na mesma esquina, me refiro ao mesmo ponto do universo. Eu chegava entre trinta segundos e um minuto antes do ônibus passar. Era tudo calculado e sempre tinha um, ou uma, que falava: “por pouco você não perde o ônibus.”

Entrei, fui para o meu banco no fundo e deitei. Eram o último e o penúltimo da fileira da direita. Pegava os dois para poder esticar as pernas. Ninguém sentava neles antes de mim. Ninguém vinha sentar do meu lado, sabiam que eu queria ficar esticado e confortável. Em três longos segundos estava dormindo tão bem quanto na minha cama.

Acordei uma hora depois, na rodovia que levava até meu Campus. Sempre acordava no mesmo lugar todo dia. O ônibus tinha que fazer um retorno, eu acordava exatamente a hora que ele estava entrando no retorno. Pensava: “só tenho mais uns dois minutos de sono”, fechava o olho e dormia de novo. Ai alguém gritava meu nome lá na frente, eu levantava e descia.

Estava exatamente do mesmo jeito letárgico que acordei às cinco e meia. Minha camisa estava toda amassada, e molhada de suor. Os bancos de couro me desidratavam. Meu cabelo estava todo remexido e meu hálito insuportável. Não tinha nenhum aluno na faculdade, só o pessoal que trabalhava lá e tinha que acordar tão cedo quanto eu e as meninas da minha cidade que estudavam nesse Campus. Eram três, que só falavam em sexo e casamento. As três iam para o refeitório enquanto eu ia para o banheiro. Limpava a cara, escovava os dentes e penteava o cabelo. Eram sete e meia quando saia do banheiro, duas horas depois de levantar me sentia vivo.

Fui direto para o estacionamento, era grande, cheio de pedrinhas. Tinha cinco carros no máximo, ninguém chegava antes das oito. Tinha uma árvore grande no meio, dava para escalar e ficar a uns dois metros do chão e na sombra. Subi e acendi um fino, tinha mais quatro num maço de cigarros. Fumei em dez minutos e as dez para as oito estava sentado no refeitório com as três que viajavam comigo. Me sentia em outro planeta conversando com elas, não concebia a possibilidade de existir gente tão estranha. Uma ganhava trezentos reais por mês em um estágio e não tomava café da manhã na cantina para economizar e comprar um enxoval. O namorado dela trabalhava em alguma coisa, ganhava quinhentos reais por mês, eles iam se casar em um ano e meio, quando ela terminasse a faculdade.

A mais nova tinha dezoito anos, as outras duas tinham vinte e três. Em seis meses a novinha tinha sido hipnotizada pelas perversas bruxas velhas. Estava namorando há três meses e não sabia como chupar um pau. Eu estava exalando alegria por estar ali com elas, depois de ter ido dormir as quatro e pouco e acordado as cinco e meia, e tive que agüentar uma delas virar para mim e perguntar: “como você gosta que faça com você”. Minha vontade foi de responder: “vamos ao banheiro e eu te falo”, como não controlo minhas vontades como deveria foi o que falei. Elas olharam pra mim com uma cara de merda e a que tinha jeito de ser mais experiente explicou para ela.

A aula começava as oito, eram cinco para as oito quando o pessoal começou a chegar. Tinha um cara da minha classe que chegava sempre a mesma hora, dois para as oito. Devia ter uma rotina tão boa quanto a minha. Ele chegava, passava pela mesa que eu estava e falava: “vamos para classe?”. Eu não respondia, levantava e ia. O papo no corredor era sempre o mesmo, ele virava para mim e falava: “já fumou hoje?”, eu respondia: “já, mais vou fumar mais”.

Minha classe tinha seis alunos, sempre que a gente chegava na classe tinha uma garota lá já. Ela não falava com ninguém, era mais feia que o normal, conhecida como Bocão. Não sabia como ela chegava na faculdade, era um dos primeiros a chegar, via todo mundo que passava, mais nunca ela. Sentamos no tablado, acendi um cigarro e começamos a conversar. Falávamos de som, de jornalismo e de mulher. Mostrei para ele um livro do Poe que estava lendo, ele se animou com os contos e pediu emprestado. Como não empresto nada ele acabou pegando na biblioteca. A Bocão começou a reclamar que eu estava fumando dentro da classe, pedi desculpas a ela e fui fumar na porta da classe. Não mudou muito a situação dela, que me olhava como quem quisesse me apedrejar.

A professora chegou e só tinha metade da classe presente, as quatro aulas iam ser com ela. A matéria era prática, então não tinha muita aula na verdade. A gente fazia um jornal para a faculdade, mais ele nunca saiu do computador. Fomos para o laboratório, eu e o cara tínhamos feito uma reportagem sobre o bairro mórbido em que a faculdade ficava, entregamos tudo, então não tinha o que fazer.

Sentamos na escada na frente do laboratório e ficamos conversando. Começou a juntar um monte de gente. Primeiro chegou o outro cara da minha classe todo empolgado com um vídeo que ele estava fazendo. Depois veio às outras duas minas da minha classe perguntando: “o que a professora vai dar até o fim do semestre? Vai ser sempre assim agora?”. Respondi que esperava que sim. A professora apareceu para conversar também, já era muita gente para mim. Não gosto de ficar no meio de muita gente, todo mundo conversa ao mesmo tempo e ninguém fala nada.

Fui até a rodovia que ficava na frente da faculdade, tinha um ponto de chapa lá. Nem chapa acordava tão cedo como eu, eles chegavam as nove e ainda era oito e quarenta. Sentei no banco de um deles e acendi mais um fino. Fumar vendo o movimento da rodovia era muito louco. Ficava sentado a uns dois metros da pista, ninguém olhava para mim. Eu observava todos que conseguia. Tinha famílias, gente indo trabalhar, universitários vindo de suas cidades e mais um monte de gente que ia para algum lugar porque não tinha nada melhor para fazer.

Voltei para o laboratório as nove e dez. Todos tinham saído da escada a uns cinco minutos, agora estavam verificando seus e-mails no computador. A única coisa legal nesta aula era ficar na frente do computador a manhã inteira usando a conta de telefone da instituição. Sentei em uma máquina e comecei a pesquisar para ver se achava algum conto do Lovercraft para fazer download. Fiquei lá até nove e meia, sai para o intervalo com o pessoal da classe.

O louco do vídeo continuava animado, estava viajando em concorrer ao Oscar um dia. Ele percebeu que meu olho estava trincado. Ficava com o olho vermelho e a cara amaçada o dia inteiro, e ela só foi perceber quase dez horas. Começou a me encher o saco porque eu não tinha chamado ele para ir fumar. Tinha mais dois baseados, então chamei ele para fumar. Fomos para um viaduto que tinha perto da faculdade, o mesmo que o ônibus que me levava e buscava usava todas as manhãs. Ficamos olhando o movimento da rodovia. Olhar de cima era como uma aventura em alta velocidade. Mirávamos um ponto e ficávamos olhando fixamente para parecer uma corrida de Fórmula 1. Ou a gente ficava cuspindo, tentando acertar os carros. O problema era que não tínhamos saliva para mais de duas cusparadas cada um.

Voltamos para o laboratório as dez e vinte. As três meninas da classe já tinham ido embora. Só o cara que eu sempre encontrava de manhã ainda não tinha ido. Ele estava esperando a gente na esperança de que tivéssemos tido alguma idéia do que fazer. A professora ficava sentada na frente do computador diagramando o jornal, ela estava tentando fazer isso há duas semanas. O loco foi para a editoração decupar o filme dele. Eu e o outro cara da minha classe voltamos à escada para conversar. Ficamos falando sobre os Ramones das dez e meia até as onze e quarenta. Depois disso ele foi embora. Esta era a hora que teoricamente acabava a aula.

Fui para o refeitório, às garotas da minha cidade estavam sentadas com todas as outras da classe dela, todas faziam artes plásticas e falavam de sexo e casamento o tempo todo. Eram duas mesas juntas, com umas quinze delas, e só duas gostosas. Mais as duas davam conta do recado, uma tinha um corpo perfeito, conhecido como “violão”, era loira e tinha cara de vadia sacana. Namorava há dois anos e já pensava em casar. A outra fazia o jeitinho “donzela”, era magrinha, toda sensível, e tinhas os peitos mais bonitos que eu já vi. Namorava um cara que era não sei o que no exercito, já era noiva. Desesperador ficar vendo as mulheres de hoje jogando a vida fora.

Todas me conheciam, me achavam uma “gracinha”, com exceção de uma que sei lá porque tinha medo de mim. Elas diziam que sempre que ela começava a fazer alguma besteira na classe alguém falava que ia me chamar, ai ela fechava a cara e ficava quieta. Ficava sentado com elas até o meio dia, que era quando todas iam embora e só ficava as três que esperavam o mesmo ônibus que eu, que só passava meio dia e quarenta.

Levantei e fui para o banheiro. Bati minha punheta matinal para as duas beldades do curso de artes. Sai e fui fumar o último baseado que me restava, fiquei andando em volta da faculdade, onde era tudo sombra, fazia um calor de rachar. Voltei para o refeitório meio dia e meia, as meninas não estavam mais lá, já tinham todas ido para a escada perto da saída onde o ônibus encostava. Ele apontou na reta na mesma hora de todos os dias, meio dia e quarenta. Entrei e fui para o meu banco, o último da direita. A janela abria mais que a do penúltimo, e o calor me fritava. Deitei e em menos de três segundos estava dormindo.