Um encontro com Glinda

Acordar nunca é o melhor momento do dia. A primeira onda de culpa por toda uma existência desperdiçada vem em forma de dores e um cheiro forte de velhice. Não há nenhum sinal de que tenha chegado em casa acompanhado ontem a noite, o que, devido ao histórico, não é algo a se lamentar. Dizem que este apartamento já foi ocupado por uma família. Tinha uma criança que chorava o tempo inteiro e alguém sempre estava gritando. Depois veio um engenheiro, que matou a mulher e se jogou da sacada. Alguns vizinhos também diriam que um grupo de estudantes que morou aqui traficava drogas.

Seguindo esta rota descendente estou esperando pela próxima surpresa que Deus tem para mim. Como Ele vai me tirar deste inferno? Segundo minha agenda não tenho nada para fazer até a morte, então me dedico plenamente a esta espera. Já faz algum tempo que conclui que o melhor lugar para aguardar esta intervenção divina é o bar do Jaime, e a melhor forma é bebendo. Porque o melhor jeito de saber o que Deus reserva é encurtar o caminho até ele.

Sempre achei que existe alguém no mundo que merece realmente ser feliz. Que tem aquela inocência no olhar e aquela coisa que faz tudo orbitar ao seu redor. Que trabalha duro mas não sente, e tem um futuro brilhante pela frente. Uma das qualidades deste ser humano hipotético é que tal alma jamais frequentaria um lugar deste. Toda vez que olhava em volta e pensava neste ser humano hipotético e feliz sabia que podia ter feito algo diferente com a vida. Me lembrava de como seria se tivesse me agarrado na meritocracia e vestido um uniforme, de todos os sonhos que meu pai teve por mim e não consegui realizar.

Não é legal ficar analisando a vida ou pensando no passado. Você puxa uma linha e BUM!......tudo desmorona.

O que me restou foi esta garota estranha, Glinda, que entrou vestida com uma roupa limpa e um sorriso na cara que gritava: olhe para mim! Vejam como estou radiante! Vejam como sou bonita e gostosa! Não conseguia ver muita coisa naquela altura. A mistura de desânimo + tédio + álcool tinha o poder de transformar qualquer coisa em desgraça. Ela veio na minha direção como uma onça que se prepara para atacar um frágil filhote desprotegido. “Tenho o que você precisa para sair dessa bonitão.” “O que é isso?” “Pó de pirlimpimpim.” “Aceito.” Entramos no banheiro feminino. Deixei na pia qualquer vestígio de equilíbrio mental que ainda me restava. Quando dei por mim não conseguia mais controlar meus movimentos, e andava como um robô em pane tentando se comunicar com a nave mãe.

Ainda marchando, e sem conseguir coordenar os movimentos com a habilidade necessária, fui sendo guiado pela garota para fora do bar. Entramos em um carro. O mundo passava pelos meus olhos como flashes de luz que se misturavam com raios coloridos e faziam “tzum, tzum, tzummmm”. Quando descemos do carro não sabia dizer quanto tempo tinha ficado lá dentro nem se ele tinha andado. Tinha sim uma casa azul, com uma porta verde limão brilhando e as paredes pulsavam. Fui conduzido para dentro pelo instinto auto-destrutivo que me persegue.

Era uma sala era enorme, com uns cinco metros de altura. Os móveis ficavam penduradas no teto, e todas as garotas tinham asas. Só tinha um armário no chão, ela abriu e tirou um par de asas como se fosse um colete. Ela colocou as asas, me agarrou pelo braço e meu pé saiu do chão. Outra garota alada pegou minhas pernas e me sentia um tapete voador brincando com o ar. Elas me soltaram no colo de uma fada, que me colocou numa cama de girassóis. Milhares de borboletas apareceram e a última coisa que lembro é de uma Bruxa Boa do Sul pousando em cima de mim. Acordei numa gaiola, sem asas e sem roupa. Não sei porque achei estranho a gaiola estar aberta. Antes que pudesse pensar alguma coisa ou ser visto pulei para fora e fui embora.