Cotidiano porção única

Conheci este cara hoje de manhã depois do que podia ser chamado de porre do século. Não lembrava de absolutamente nada. Acordei perdido num hotel barato onde só tinha louco, e ele estava no quarto do lado. Tinha uma coisa estranha com um Blower Brush. Ele gostava de ver o vento espirrar a poeira pelo ar, dançando pelos raios de luz que passavam pela janela. Ficava olhando para o móvel empoeirado, segurando aquela coisa com as duas mãos, como um atirador de elite mirando o alvo, aí começa a apertar aquilo compulsivamente com os dois polegares. Depois começava a tentar pegar a poeira freneticamente para ver como os ácaros giravam no vento. Até ele conseguia entender o quão estranho aquilo era. Ele olhou para mim e falou: “A Camila já foi embora. Você também tem que ir.” Com certeza eu tinha que ir. Ainda não vi a Camila, mas sei que se eu ver vou pensar: “já devia ter ido.” Porque minha cabeça estava doendo o suficiente para eu saber que não queria lembrar da noite passada. Porque lembranças são coisas que podem te atormentar uma vida inteira se você não conseguir se livrar delas.

Agora ele esta na minha porta cheio de tiques querendo saber onde ela se meteu. “Vamos, me diz se ela chegou? Ela está aqui? Cadê ela?” A sala era um parque de diversões para ele, que andava por todo lado apertando aquele treco desenfreadamente. Quanto mais eu falava não sei, com mais vontade ele apertava. Disse que a porta estava destrancada, e ele podia sair quando quisesse. Fui para cozinha e tentei esquecer o que estava acontecendo na sala. Preparei umas torradas e um café e a campainha tocou de novo. O Blower abriu a porta e provou que tinha alguma utilidade. Então uma garota estranha, se retorcendo toda, alisando os próprios braços e olhando para baixo com cara de quem tinha acabado de chegar no paraíso parou na minha frente e disse “Ooooi...”. Minha primeira reação foi prender a respiração buscando o auto-sufocamento. Maldito instinto de sobrevivência! Se existe a hora perfeita para ter um ataque cardíaco, era essa. Foi uma pontada no peito? Infelizmente não desta vez. Ela sentou na mesa, e não sei porque servi ela com o prato e a xícara da esperança de curar a minha ressaca. “Qual o seu nome?” “Camila.”

Estava quase convencido de que nunca mais deveria beber na vida quando a campainha tocou mais uma vez. Senti um frio na barriga e minha cabeça girou. Ia acontecer um congresso de lunáticos na minha casa e esqueceram de me avisar? Será que alguém pode me dar uma morte rápida e indolor? O Blower mais uma vez agiu como mordomo e uma senhora, com um óculos bonito e uma pasta na mão entrou como se estivesse em casa. “Bom dia Baiacu. Você não lembra de mim, mas já sou sua psiquiatra há tempo suficiente para não dar a mínima para isso. Leia o papel.” Ela tirou da pasta uma folha sulfite com letras grandes. Minhas letras. “A Paula é legal.” Levantei a cabeça lentamente e olhei para ela. Ela tomou a folha da minha mão e guardou. “Viu? Eu sou a Paula. Também quero torradas e café.” Um sniper! Quero que um sniper coloque uma bala no meio da minha testa. Agora! Agora! Por favor Senhor! Estou plenamente satisfeito com minhas angústias e medos. Gosto de ser paranóico e ficar sozinho. Estou sob controle. Obrigado. Sumam todos daqui!

Voltei para o fogão e comecei a cortar mais uns pães velhos. Estava difícil ter uma reação. Pensei que com sorte eles podiam comer e ir embora. Isso ou deixava eles conversando na sala e ia dormir torcendo para acordar em outra dimensão. Coloquei azeite, orégano e meu cérebro na frigideira. O Blower também sentou na mesa e quando vi parecíamos uma família reunida para a refeição do domingo de manhã. Só não estávamos tão felizes quanto na propaganda da TV e nem devia ser domingo. E também não tinha um cachorro. A psiquiatra parou de ler o catálogo da Avon e começou a falar. “Aquela é a Camila, sua namorada. Ela é uma verdadeira colecionadora de síndromes escandinavas e alemãs. E o Tom Sawyer tem tantos transtornos que não vale a pena enumerar. Ele é amigo dela e você não gosta muito dele porque ele tem uma paixão platônica por ela. Atualmente meu diagnóstico para você é de síndrome de Korsakoff. Mas você já passou pela encefalopatia de Wernicke, fazendo um caminho clássico da literatura médica. No que se refere a transtornos, o mais latente no momento é o de Passividade Mental.” Ela só podia estar certa, se tivesse o mínimo de atitude já tinha mandado todos a merda.

Porque eu não sabia o que falar, eu não falava. Porque as vezes o silêncio é uma forma de falar alguma coisa que não se consegue dizer. A Dona segurava a xícara numa mão enquanto lia a revista, o transtornado espirrava migalha de pão pela mesa inteira e a estranha ficava me olhando e girando a cabeça. Aquilo não tinha a menor explicação ou sentido. Depois de uns quinze minutos de silêncio perguntei se alguém queria comer mais. Ninguém respondeu e entendi como um não. Tirei a mesa, acendi um cigarro, liguei a televisão e sentei no sofá. Todos vieram para a sala e se sentaram também. Dei uma talagada de conhaque e deixei a garrafa em cima da mesa de centro. Ninguém bebeu. Quando acabou o programa para senhoras do lar que não tem mais nada para fazer a psiquiatra juntou suas tralhas e se levantou. “Tivemos uma ótima seção hoje. Nos vemos novamente daqui uma semana. Tomem seus remédios. O seu está na gaveta do quarto Baiacu. Não se matem, se não eles reduzem meu salário e toda esta vida feliz vai por água abaixo.” Aproveitei a deixa e parti para o plano B. “Também estou um pouco cansado e vou dormir.” Dei outra talagada no conhaque e fui para o quarto. Os remédios estavam na gaveta. Antes de deitar escrevi no meu braço com uma caneta:

a) confie na Paula, trepe com a Camila e abra a porta para o Blower.

b) fuja para bem longe.

c) se mate assim que tiver coragem.