Um dia desses, andando pela Avenida Paulista e Brigadeiro Luiz Antonio, me deparei com um rapaz caído no chão, lá pertinho da Paróquia da Imaculada Conceição.
Amo essa igreja. Cada vez que passo por ela sinto-me convidada à entrar e orar, mas por incrível que pareça, nunca o fiz. Creio que pelo fato de estar sempre apressada, cada vez que tenho que ir lá para a Paulista. Aliás, a Avenida Paulista é o lugar das pessoas apressadas, do corre-corre, dos negócios e negociantes. Mas, voltando ao meu assunto principal, o rapaz da Brigadeiro Luiz Antonio, era um rapaz de cabelos escuros e encaracolados, imundos, e o próprio rapaz estava igualmente imundo, penso que estava drogado e alcoolizado, mas não tenho muita certeza de suas condições. Havia algo como que um pedaço de isopor próximo à ele, um pedaço de isopor lambuzado de fezes.
Nesse dia fazia um calor insuportável, e o asfalto da Avenida Paulista fervia. Eu não via a hora de resolver o assunto que me trouxera até ali e então, ir embora para casa e tomar uma ducha bem fria para me refrescar daquele calor que era, realmente, de matar. Aí está algo que aquele rapaz, deitado na Brigadeiro e próximo à igreja Imaculada Conceição, com certeza não fazia há muito, muito tempo: tomar uma ducha. Quando eu olhei bem para o rapaz, pensei: "Deus do céu, esse cara aqui, deitado nesse chão escaldante, com todo esse calor infernal....Deus do céu, ele deve estar desidratado, se já não estiver morto!..." E continuei mergulhada em meus pensamentos imbecis: "Caramba, tanta gente passando por aqui, lugar ultra movimentado, passa um, passa outro.....e ninguém faz nada! Nem para ligarem para o SAMU, para o Corpo de Bombeiros, nada....." Aquele pobre rapaz necessitava de socorro, de cuidados. Todo mundo podia ver isso. Aqueles engravatados todos que passavam por ali, passavam e, a maioria deles nem sequer olhava para o rapaz deitado no asfalto da Brigadeiro. Garanto que todos esses "white-collars" tinham um celular guardado em suas pastas executivas, ou em algum outro lugar, e o que custava fazer uma ligação para o resgate?.... E eu continuava pensando, olhando para o rapaz em petição de miséria. Como que tentando "fugir" daquela visão triste e tão desumana, caminhei um pouco Brigadeiro adentro, dei uma boa olhadela em algumas vitrines, vitrines convidativas pelos baixos preços das mercadorias, em geral lojas de roupas femininas. Apenas $ 9,99 por uma simpática e toda florida blusinha de jérsei. O preço era realmente tentador. Eu trazia comigo uma nota perfeita de dez reais. Dava para pagar pela blusinha. Aquela nota de dez reais não me faria falta, então porque não entrar logo na loja e comprar a roupa? Pensei, de novo, no rapaz deitado no chão, pertinho da igreja. Com uma tão perfeita nota de dez reais, eu podia comprar um sanduíche, café com leite e levar para ele. Eu podia, sim. De repente, eu senti medo. Se eu tivesse que comprar algo para ele comer, com certeza eu teria que me agachar, cutucá-lo, chamá-lo para que pudesse comer. Sim, eu teria que TOCÁ-LO. E esse era o grande problema. Tocar naquele ser imundo, um completo desconhecido, talvez drogado, alcoolizado, talvez violento! Bom, eu não entrei na loja que vendia a blusinha florida de jérsei e nem tampouco fui comprar o sanduíche e o café com leite. Deixei que a nota de dez reais permanecesse guardada em minha bolsa. Voltei, então, para o local onde o rapaz estava. "Eu realmente não compreendo" - pensei. " Infelizes, esses engravatados! Porque não fazem alguma coisa?..." Eu tive vontade de começar à gritar, perguntar em vóz alta para aquela multidão, PORQUE ELES NÃO FAZIAM ALGUMA COISA??? Era revoltante. De repente, ouvi um som já familiar para mim. Esse som era Beethoven, com sua magnífica "Sonata ao Luar". Aquele clássico, tão familiar para mim, me convidava à atender o meu celular. Irritadíssima, por conta da indiferença daquela multidão em relação ao pobre rapaz da Brigadeiro Luiz Antonio, eu nem sequer quis atender ao chamado de Beethoven. Foi então que, subitamente, senti algo dentro de mim que me fez sentir imunda. Mais imunda até do que o próprio rapaz, na imundice de suas próprias fezes. Senti asco de mim mesma. EU TINHA UM TELEFONE CELULAR. SIM, EU TINHA UM TELEFONE CELULAR. Eu tinha um telefone celular, eu tinha uma nota perfeita de dez reais, mas eu não tinha humaninade e sensibiliade. EU poderia chamar o resgate, o Corpo de Bombeiros, e à quem quer que fosse, para socorrer aquela vítima da miséria, dos maus tratos que a vida lhe impunha. EU me encontrava ali, olhando fixamente para aquele rapaz de cabelos escuros e encaracolados, deitado sob o asfalto escaldante, e EU reclamava e me revoltava com todos os "white-collars", com todos os negociantes, mas EU MESMA não movia uma única palha para modificar aquela cena, aquela cena indigna e tão triste quanto a própria Sonata ao Luar. Imperdoável, completamente imperdoável a minha atitude diante daquela cena chocante e desumana, que nem Beethoven conseguiria perdoar, se ali estivesse. Eram mais ou menos duas da tarde. Lembrei-me que eu tinha uma aula para dar às tres e meia. Eu estava longe de casa e, se quisesse chegar à tempo para a aula eu teria que, realmente, me apressar. Tinha que pegar o Metrô Brigadeiro, depois sair da linha verde e fazer baldeação na estação Ana Rosa ou Paraíso e, quando chegasse na estação terminal Jabaquara, teria ainda que pegar um ônibus que me deixaria próxima de casa. Olhei, pela última vez, para o rapaz da Avenida Brigadeiro Luiz Antonio. Aquele era um olhar de adeus. Um olhar de adeus e misericórdia. Olhei também, pela última vez, para a igreja Imaculada Conceição. Pedi à Deus que me perdoasse, mas Deus insistia em olhar para mim com um ar de grande reprovação. Comecei à caminhar em direção ao metrô. Por alguns poucos segundos, hesitei. Pensei em Deus, em Beethoven,  na triste e melancólica sonata recém composta para aquela igualmente triste ocasião. Mas eu tinha que partir. O dia estava insuportavelmente quente, e uma ducha fria me esperava em casa.


Lygia Losinski
Enviado por Lygia Losinski em 14/01/2013
Código do texto: T4084801
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