Cinthia morre na festa

Ali em frente, estão as águas pesadas do Rio Paraná. À sua direita, a Ponte da Amizade. Este lado é Paraguai, o outro lado é Brasil. Em frente, um pouco mais adiante, a Ilha Acaraí, que divide as águas do Paraná em dois braços. De vez em quando, uma canoa a motor passa roncando a nossa frente. Perdão! Não nos localizamos ainda. Estamos num condomínio de luxo, num atracadouro do Yacht Club, no município de Hernandarias, vizinho a Ciudad del Este, Paraguai. Sou um dos muitos curiosos da desgraça humana. Aqui em frente, um dos diretores do condomínio. Muito prazer. Ele pediu ajuda a uma equipe de mergulhadores do Corpo de Bombeiros de Foz do Iguaçu, para ver se encontram Cinthia Raquel. Os mortos não reconhecem fronteiras, podem parar na margem de lá.

Cinthia tem 18 anos. Ou melhor, tinha. Para sua mãe, que não admite sua morte de maneira alguma, ainda TEM 18 anos. Estuda num colégio católico de Ciudad del Este. Cinthia está se formando no Segundo Grau. Vieram fazer um churrasco para celebrar a formatura na beira do Rio. Rio, com maiúscula, porque este é o Paraná. Aguas pesadas. Lá na Ilha Acaraí, dizem que existem as aranhas mais venenosas do mundo. Pode ser exagero. Mas não é exagero, é o que diz o tenente da Marinha paraguaia a seus subordinados:

- Melhor não vir ninguém de Foz. Vão nos criticar. Vão dizer que não temos capacidade. Mas vocês vão tentar encontrar o corpo agora? Não, são quase 6 da tarde. Dentro de uma hora o sol já se terá posto. É muito perigoso para nossos mergulhadores. Bucear, se diz em espanhol. Muito perigoso bucear a esta hora.

A mãe chega, vem chorando. Diz que é super cuidadosa com a filha:

- Tem 18 anos. É linda, minha criança.

Calor infernal. Senta-se em frente ao rio. O calor é horrível, a umidade maior ainda. Os mosquitos começam a visitar nossas cabeças, formando uma coroa alada em contínuo movimento. Isso incomoda. Mas a mãe, o que será que vê? Com certeza, vê a filha surgindo das águas, sorrindo, molhada, suja de lama, mas viva.

- Minha filha, minha filha. Não, não será o que diz o Tenente Ferreira. Mostra pra ele que você está viva. Vamos, filha!

- Temos que esperar 24 a 48 horas para o corpo subir, diz o Tenente Ferreira.

O militar explica:

- Os corpos dos que caem aqui não vão longe. O Rio Acaraí faz uma barreira às águas do Paraná... Nesse ponto, uma correção: não há mais águas do Acaraí. Suas águas foram desviadas para o Paraná, depois da construção de Itaipu. Quando chove muito, o excesso das águas do Paraná sobe no leito seco do Acaraí. De alguma forma, isso cria uma barreira. O corpo poderá subir aqui mesmo. Mas só dentro de 24 a 48 horas, quando os pulmões se encherem de água... Como é mesmo o processo fisiológico que faz o corpo dos afogados subir à tona depois desse tempo?

- Não, minha senhora, pode continuar olhando o rio. Tudo isso é conversa de quem não tem esperança, conversa de cínicos, dos que não creem em milagres. Cinthia vai aparecer logo, logo.

Cinthia era a vida em pessoa. Quando nasceu, que alegria! O pai não se importou, mas os irmãos, os cunhados, os sobrinhos, todos vieram ver Cinthia Raquel. Era linda. Foi crescendo linda e inteligente. Com 18 anos se formou, ela vai subir á tona, de repente, brincando, ah... Ah... Vai te dar um susto, mamãe, ela sempre fazia isso, gostava de surpreender.

A noite cai. Os bombeiros de Foz foram dispensados, o sol já se pôs, mergulhar só amanhã, buscas encerradas por hoje. Ña Cipriana não quer ir embora. As muriçocas mordem por todos os lados, desesperadas por sangue humano. Sua irmã quer levá-la, mas Ña Cipriana não arreda pé.

- Quando chegam os bombeiros para salvar minha filha? Quando?

Os curiosos continuam conjecturando. Se não aparecer por aqui, onde aparece o corpo? Pode ser no encontro do Iguaçu com o Paraná, lá onde começa o Paranazão. Mentira, mentira, Ña Cipriana sabe que é mentira. Cinthia vai aparecer daqui a pouco. Ela não vai sair da beira do rio. Não vai. Não adianta o cunhado insistir, tentar arrastá-la, ela vai passar a noite esperando em frente ao rio, ela não vai deixar sua filha sozinha, ela sabe que, quando Cinthia aparecer, vai querer abraçá-la, beijá-la, vai passar-lhe o cobertor em volta do corpo molhado, ela estará tremendo de frio, mamãe, foi horrível, eu pensei que ia morrer, a gente estava brincando, Max me empurrou de brincadeira, não foi culpa dele, a gente havia tomado só duas cervejas, ele estava brincando comigo, afundei uma vez, bebi muita água, afundei a segunda vez, via as pernas de Max lá em cima da água, vi o sol reluzente queimando a água, como eu queria chegar lá de novo, mamãe, me perdoa, eu não queria fazer isso, para de chorar, mamãe, para, o Max não teve culpa, mamãe, lembra de mim, vai pra casa, não tem mais jeito, lembra de como eu fui boa pra você, não lembra das nossas brigas, sim, eu mentia de vez quando, todo mundo mente um pouquinho, mas era porque a senhora me prendia muito, vai com Deus, eu estou bem, só que aqui em baixo é tão frio, mãe me perdoa...

Ña Cipriana, só com uma injeção se deixou levar para o carro, de onde a transportaram para casa, para poder dormir, que não queria sair do atracadouro, do meio das muriçocas, de frente à Ilha das Aranhas Venenosas. Ela queria passar a noite na beira do rio, esperando Cinthia voltar.

Não adianta, você nunca vai entender a dor de uma mãe que perde sua filha assim, com 18 anos, na flor da juventude, linda, radiante, com toda a vida pela frente. Você nunca vai entender. Pode ficar olhando a pobre mulher sentada na areia, de costas para você, pode passar toda a noite ali, pode esperar até que tirem o corpo do rio, você nunca vai entender, porque a dor é única, é egoísta, é impartilhável. Dorme, Ña Cipriana, que Cinthia Raquel não vai voltar. Reza por ela.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 20/02/2017
Reeditado em 22/11/2021
Código do texto: T5918290
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