A dura

A maconha é proibida por lei. Mas não é por isso que ela é uma droga. A cannabis é uma droga, entre outras coisas, porque age no sistema nervoso central e altera sua percepção da realidade. Por causa desta alteração há quem diga que dirigir fumando maconha, ou pouco tempo depois de dar um tapa, é um risco para a segurança da humanidade. V. não se importava com nada disso. Para nosso destemido personagem a lei não atendia aos interesses da sociedade, e esta história de que fumar maconha dirigindo é um risco para a segurança da humanidade era papo-furado. Por isso sempre que ia pegar a estrada bolava um baseado para cada 100km de viagem. Além de maconheiro, V. também é encanador. E dos bons! Prova disso é que uma empreiteira (das grandes!) paga uma boa quantia mensal para ele vistoriar alguns de seus empreendimentos brasilzão afora. Isso significa que V. passava um tempo legal na estrada escutando Rock’n Roll no volume que se deve, e fumando maconha.

No dia em questão nosso querido arauto dos canos tinha que percorrer 900km até seu destino, por onde permaneceria por longos e quentes dez dias. Pensando que consumiria pouco menos de três gramas de erva por dia, mais os nove baseados que precisaria para a volta, separou o que julgava ser 50g de maconha de seu estoque. Seguindo a máxima de ‘Profissão de Risco’, colocou o prensadinho numa sacola com cuecas sujas. “Não conheço um policial de alfândega mal pago que reviraria uma sacola de cueca suja”, diria Johnny Depp na pele de George Jung. Sem mais à fazer ele juntou umas roupas, a pasta com as plantas dos prédios, e antes do sol apontar no leste estava na pista fumando um baseado, ao som de Lynyrd Skynyrd, pensando que os canos de esgoto dos condomínios de alto padrão deveriam ter oito ao invés de quatro polegadas. Não se sabe bem porque, mas os afortunados que podem morar em prédios com nomes que terminam em Tower não gostam de jogar papel higiênico no lixo. Uns acreditam que é porque eles não conseguem conviver com a própria sujeira (tipo, faz lembrar o imposto de renda), outros acham que eles tem vergonha de colocar o saco cheio de papel pintado de merda no lixo coletivo (podem parecer sujos e normais, sei lá). O importante para ele, e para os executivos da construtora, é que os síndicos parem de reclamar dos encanamentos entupidos, e a solução eram os canos de oito pelegadas.

Para V. fumar maconha dirigindo era quase como estar numa banheira de água quente recebendo uma massagem diretamente no lóbulo frontal do cérebro. Sua técnica consistia em sempre ter os baseados bolados (bolar um baseado dirigindo sim é um risco para a segurança da humanidade) e acende-los depois do pedágio e/ou sequente posto da polícia rodoviária. Já se iam mais de uma década sem uma falha sequer.

Crente de que seus maiores problemas jamais teriam mais que oito polegadas, V. parou no pedágio. Primeiro fez o Josh Homme gritar um pouco mais baixo, em seguida pegou a carteira e tirou o dinheiro, depois levantou a cabeça e se deparou com três versões tupiniquins do Mad Max e um pobre cachorro dedo duro. Os quatro alinhados atrás da cancela, ou seja, na sua frente. Cabe aqui uma rápida apresentação dos novos personagens. O sargento P. era católico praticante e aparecia com frequência num Big Brother policial da TV a cabo. Para o sargento M. o sistema estava acima da bíblia, mas nem a lei o obrigaria a tirar seu Ray Ban, enquanto o cabo X. estava em fase de testes e tinha a pose de quem havia nascido para ser policial. Por fim o Deus Demônio era um pastor alemão que estaria bem mais feliz passeando com um idoso pela praça. Foi o sargento P. que fez sinal para V. encostar antes mesmo dos bastão de alumínio subir e dar uma chance para ele sair ileso dali. Sgt. P. se abaixou um pouco para ficar com a cabeça na altura do vidro e, com uma mão para trás e a outra levantada com o dedo indicador e o médio sinalizando, falou: “E aí irmão, você vai facilitar para gente ou dificultar para você?” O “hã?” chapado de V. foi inevitável, mas o encanador já tinha entendido que ia entrar pelo cano. “Vou facilitar para a gente.” “Então pega tudo que você tem e coloca no banco do passageiro.” Com uma calma atípica de quem ainda acredita que o estupro pode ser evitado, V. tirou o tubinho de M&M recheado com sete becks e duas pontas do porta trecos da porta do motorista. Em seguida desceu, abriu o porta malas e pegou o prensado no meio das cuecas sujas. Juntou tudo no banco e ficou esperando por uma ordem qualquer encostado no capô.

“Da dois passos para frente, coloca a mão na cabeça e abre as pernas.” O cabo X. e o sgt. M. se preparavam para vasculhar os bolsos de V. enquanto o sgt. P. descobria o que tinha em cada porta trecos do carro. “Não tem uma capsulazinha por aqui? Uma pedrinha você também não curte?” De repente parecia que não ia ter mais como evitar o estupro. “Me dá os seus documentos e os do veículo.” Era como se o lóbulo frontal do cérebro de V. estivesse sendo tomado por spider mites. “É a primeira vez que você é pego?” “Não.” “Quando foi a primeira vez?” “Faz três anos.” “Então você já sabe como é?” “Já” “Tira tudo do carro que o Deus Demônio vai procurar mais.” Malas, mochilas, canos, pastas, papéis, ferramentas, uma sacola de mercado com duas maçãs podres e um chocolate, o carro, tudo pisoteado pelas patas sujas de terra do atabalhoado Deus Demônio em busca do cheiro da alegria. Agora é a vez do sgt. P. conversar com V. “Para onde você está indo? O que você faz?” “Sou encanador, estou indo trabalhar numa obra no interior.” “Quanto de droga tem ali no banco?” “Acho que uns 20g.” “Acho que tem bem mais lá. Esta maconha toda não é para você dividir com a galera?” Nesta altura as palavras extorsão e traficante piscavam em luzes de neon gigantes da cabeça de V. “Não senhor, sou só um usuário. Sou trabalhador, olha todas as minhas ferramentas aí?” Aqui foram só dois parágrafos, mas mais de uma hora já tinha ido para o espaço, nem o sgt M. tinha mais paciência para tortura psicológica. “Todos vocês são, só não respeitam a lei. Vamos levar ele para a civil, não tem mais nada. Coloca as coisas no carro de novo.” Depois de tanta subserviência V. se encheu de coragem para falar. “Um instante, por favor. Facilitei para a gente, estou colaborando com tudo. Ainda tenho mais de dez horas de estrada, me deixem ir.” Como quem já sabia que o estupro era inevitável desde o primeiro momento, o cabo X. revelou: “Você tá pedido. O coronel viu você pela câmera e mandou vim buscar. É só um 9.099.” “O que é isso?” “É uma massa redonda, com molho de tomate, mussarela, orégano e azeitona, feita no forno a lenha.”

* O conto “A dura” foi originalmente publicado no jornal Cannabica.