Nascer e morrer no conhecer

Sob um ponto de vista linear, a aquisição do conhecimento consiste no acúmulo de informações relativas a eventos, fatos e seres, que invariavelmente guarda relação com outras informações presumivelmente já adquiridas. E é nesse sentido que dizemos linear, pois o processo não se baseia necessariamente numa relação causal linear, em que informações dependem de outras. De fato, podemos pensar no caso exemplo da criança, que aprende a falar e o significado das palavras sem ter conhecimento “dicionaresco” de nenhum verbete.

Entendemos, sob essa ótica, que aprender é um processo mais complexo, mas não entraremos em análise mais profunda desse aspecto até pela nossa deficiência de conhecimento da literatura, em face da massiva atenção de inúmeros pensadores.

De qualquer modo, é notória a impressão subjetiva que nos causa a aquisição de qualquer conhecimento novo: não raro experimentamos um certo bem-estar (maior ou menor, sempre na dependência de nossas preferências, inclinações e vocações pessoais) a cada oportunidade que tomamos conhecimento de coisa nova – seja ela relativa a um fato por si só, inquestionável, ou então relativa a uma informação de natureza relativa, questionável (como por exemplo, a interpretação de um fato histórico cujas fontes de referência podem vir a ser questionadas no futuro, dando margem a uma outra interpretação; ou então uma teoria física explicativa para um determinado fenômeno da natureza, que pode ser questionada e dar lugar a uma nova teoria física – nos termos do que já bem notou Kuhn em “A Estrutura das Revoluções Científicas” de Thomas Kuhn, 1962).

No entanto, a cada passo em que assimilamos uma informação, ela entra para nós como um dogma, um paradigma. Ela é um pilar, um marco no qual nossa mente se baseia na construção do edifício de nosso conhecimento pessoal. E nosso sistema de aprendizado depende em muito da existência desses marcos; por exemplo, as épocas em que a história do mundo é artificiamente dividida – quando na verdade a história é um processo contínuo de fluxos de acontecimentos.

Essa série de marcos, chega (em nossa mente) ao grau de quase uma pulverização de pequenos marcos, registrados em pequenos e grandes eventos que nossa mente toma por significativos por razões suas, ou por terem sido focalizados na história por tradição, etc.: tanto os inquestionáveis, como “o momento em que peguei os óculos”, “quando aquele pássaro pousou naquele fio”, etc., quanto os questionáveis, como “a descoberta do elemento químico X por Y”.

Uma vez que adquirimos um conhecimento novo, a série de informações concernentes a ele são plasmadas nos moldes desses dogmas e marcos. Nesse sentido, o aprender é o processo de se encher a mente, que é de natureza expansiva. Por outro lado, a formação do conhecimento de um determinado tema, justamente por consistir na construção desse edifício mental organizado de marcos, tende a um estado de estagnação, um estado final estacionário.

Um exemplo disso é a consolidação de uma teoria científica, que por força de se tornar completa pela sua construção, chega a um estágio final em que se a toma por feita, e assim incompatível com outras interpretações por ter se tornado inflexível. No âmbito desse exemplo vemos justamente a análise de Kuhn, que enxergou na essência das teorias a sua fragilidade, sua questionabilidade: por ter uma base (dogmas, premissas), são passíveis de refutação e substituição por teorias posteriores e mais abrangentes.

Outro exemplo disso é um fato histórico. Dizíamos “X descobriu Y”, e no entanto uma investigação mais detalhada pode revelar que na verdade o processo da descoberta de “Y” envolveu inúmeros participantes na história que, por questionamentos, investigações, debates, contribuíram para que “X” tivesse um papel específico (às vezes nem tão importante quanto se supunha) no processo. Está claro que nosso conjunto pessoal de marcos a respeito desse fato é sempre limitado. Nossa teoria sobre a realidade tem limite.

A questionabilidade de diversos eventos e informações é um fato, e por isso a mesma observação de Kuhn com respeito às teorias científicas pode ser assim transferida para outros campos – e o campo do nosso conhecimento pessoal, por exemplo.

Vemos que o edifício do conhecimento sofre processos de construção e desconstrução, intermediados por estágios de aparente estabilidade, quando um certo número de paradigmas e informações atingiu certa massa.

Voltando, não raro a aquisição de conhecimento causa em nós uma surpresa (no sentido das relatividades de impressões individuais citadas no 2º parágrafo), e não menos o é a descoberta de uma ilusão, isto é, o descobrirmos num certo momento que estávamos enganados quanto a uma informação. Em não se tratando de revelações especialmente desagradáveis que toquem nossa sensibilidade ou venham a ferir nosso íntimo, poderemos experimentar a citada sensação de bem-estar na aquisição de conhecimento. É como se a cada novo saber algo a mais da vida nascesse dentro de nós. O aprendizado é uma espécie de movimento de nosso eu em direção à uma noção maior da vida, e com ele nos sentimos realmente em um estado mais adiantado, mais expandido, em relação a antes.

Mas, por outro lado, o progresso desse curso nos leva ao estado paradigmático. Ele, que nos dá um certo orgulho do saber, é ao mesmo tempo a sentença de morte do deslumbramento da expansão do saber.

Fica claro, sob tal ponto de vista, que aprender é um processo de nascimento e morte: em expansão, caminhamos em direção à sensação de vida interior, de uma ampliação dessa impressão com a ampliação do nosso saber. Essa é uma condição de nascimento. Por outro lado, chegando num certo estágio atingimos à condição de morte, quando nosso estado ascendente estaciona e atingimos a condição paradigmática, estática, de natureza incompatível com mudanças ou adaptações. É de fato um estado de morte.

Claro que a alternância desses estados de vida e de morte é um processo dinâmico que não se define necessariamente de maneira absoluta; eles se distribuem fragmentados por diversas áreas de nossa mente em face das múltiplas facetas de cada nova porção de conhecimento que adquirimos.

Verifica-se, sob tal ponto de vista, a manifestação de um caráter cíclico alternado dos dois estados, o estado de “viver” e o estado de “estar morto”, e de fato processos cíclicos são características marcantes na natureza, associados a processos evolutivos no tempo.

Podemos imaginar que esses dois estados tenham uma correspondência com processos biológicos; e fazer-lhes a analogia com os estados de tensão (nascer) e relaxamento (morrer).

Nesse sentido, o processo do aprendizado talvez requeira sim a alternância dos dois estados por razões essenciais da vida, e inexistam somente o estado de aprender continuamente sem fim e solução de causa (o estado de “nascer”), que manteria o ser num constante estado de tensão (uma abstração da ansiedade ilimitada), ou o seu antônimo, o estado de consolidação absoluta do saber (o estado de “morrer”), que ao contrário, manteria o ser na hipotética estagnação absoluta.

O caráter cíclico da natureza é o que já aponta o Tao, com os conceitos de yin e yang: no apogeu da manifestação de um polo está o seu declínio e a semente de manifestação do outro. De sorte que de alguma maneira o estado de morte do saber pedirá o estado de renascimento, vice-versa. Naturalmente isso tem certa afinidade com o teorema do retorno de Poincaré [1,2].

Enfim, é digno de nota que o orgulho do saber deve ser, sob tal óptica, um estado transitório, e sua continuidade prolongada seja um processo tendente ao antinatural (se bem que, perante a natureza, não consigamos avaliar duração e intensidade sob um ponto de vista absoluto). Igualmente, o estado de ansiedade do assimilar contínuo.

[1] K. Huang, Statistical Mechanics (John Wiley & Sons, 1963)

[2] M. Cattani, J.M.F. Bassalo, Rev. Bras. Ens. Fís. 30 (2008) [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-11172008000200002]