NOVENTA E NOVE TROVAS

PRIMEIRA

Chamam às quadras de trovas,

Quando co'o metro dileto

Têm, ao trazer boas-novas,

Em si um poema completo.

* * *

SEGUNDA

Silva o rebenque no arranque:

-- "Zurra burro! Relincha égua!"

Que importa que a mula manque?

Vou rosetar mais meia légua!...

* * *

TERCEIRA

Olhos nos olhos da fera

E pernas p'ra que te quero!

Tomo onde menos s'espera

Carreiras de desespero...

* * *

QUARTA

Hoje te vejo de perto;

Amanhã eu vou-me embora...

À noite passo desperto

Para ver-te desde a aurora!

* * *

QUINTA

Uns olhos de verde gaio

Passo os dias a admirar.

Olhos que olho de soslaio

Para ela não me maldar.

* * *

SEXTA

Pôr gravata vez em quando

Qual arreio em potro xucro:

Nasci desnudo e berrando...

Venha o que vier será lucro!

* * *

SÉTIMA

Muitos dizem ser mentira

Isto de amar de verdade.

Mas quanto o peito delira

Não sabem nem a metade...

* * *

OITAVA

Se nada vem por acaso,

Por que só me vens co'a lua?

A saudade, em todo caso,

Ao meu lado continua.

* * *

NONA

-- "Meninas de bendizer!

Mulheres de bem amar!

Onde anda meu bem-querer?

Onde haveria-de andar?"

* * *

DÉCIMA

Vez em quando me lamento

Das voltas que o mundo dá.

Volta e meia é sentimento

Algo bom em hora má.

* * *

DÉCIMA PRIMEIRA

A morte vem a galope

Montada n'um corcel negro...

Doente, já tomo xarope;

Triste, ligeiro me alegro.

* * *

DÉCIMA SEGUNDA

-- "Eu vou mais logo à cidade

Mas volto ainda cedinho."...

O tempo d'uma saudade

Não passa quando sozinho!

* * *

DÉCIMA TERCEIRA

Abro olhos a ver e olhar,

Ora raso; ora profundo.

Fecho olhos a imaginar

A imensa imagem do mundo.

* * *

DÉCIMA QUARTA

Cumbuca de sapucaia

A prender mão de macaco,

Que nem onça na azagaia

Presa dentro do buraco.

* * *

DÉCIMA QUINTA

Alguém que cedo madruga

Com mais ajuda de Deus

Apenas suores enxuga,

Não as lágrimas dos seus...

* * *

DÉCIMA SEXTA

A espera de quem alcança

Sempre é difícil momento.

Há quem chame de esperança

E outros de padecimento...

* * *

DÉCIMA SÉTIMA

Jamais toma as minhas dores,

E ainda me põe no fogo...

Com quem não morro d'amores,

Só falo "olá" e "até logo".

* * *

DÉCIMA OITAVA

Quem faz hora, nada faz:

Perde tempo seu e alheio...

Homem vão em horas más,

Sempre bota Deus no meio!

* * *

DÉCIMA NONA

Muitos vão do luto à luta

Com sangue nos olhos fitos.

Misturam fel com cicuta,

No cálice dos aflitos...

* * *

VIGÉSIMA

Mineiro não faz presença,

Nem diz falso frase leda.

Tampouco pede licença,

Ele diz mesmo é "arreda!".

* * *

VIGÉSIMA PRIMEIRA

Sou, como diz o outro, prático:

Não caço chifre em cavalo!

Quem me sabe sistemático

Cala a boca quando eu falo.

* * *

VIGÉSIMA SEGUNDA

O dia tem tantas horas,

Que às vezes nem me dou conta.

Ai senhores, ai senhoras,

Logo o sol no céu desponta!

* * *

VIGÉSIMA TERCEIRA

Tem a ver com ir em frente

Essa coisa de viver.

A gente olha e, de repente,

Tudo está a acontecer.

* * *

VIGÉSIMA QUARTA

Tem dias que nem discuto:

"Tudo é como tem de ser"...

N'outros, digo resoluto:

"Nada tem quem tudo quer!"

* * *

VIGÉSIMA QUINTA

Tudo é confuso -- não nego --

Quem tenho sido eu não sei,

Se rei em terra de cego

Ou cego em terra sem rei.

* * *

VIGÉSIMA SEXTA

Cheio de boas intenções

Faz-se da vida um inferno...

O que são desilusões

Quando o suplício é eterno?

* * *

VIGÉSIMA SÉTIMA

Vive com medo de aranhas

Quem d'elas teme o veneno.

Eu a conversas estranhas

Evito desde pequeno.

* * *

VIGÉSIMA OITAVA

Dizem que em noite de lua

Aparece assombração.

Mulher de branco na rua

Já me dá palpitação.

* * *

VIGÉSIMA NONA

Devagar se vai ao longe

E com Deus no coração.

Se o hábito não faz o monge,

Tampouco a cruz o cristão.

* * *

TRIGÉSIMA

-- "Ó menina dos meus olhos!

Ó menina d'olhos meus!

Por que prendes a ferrolhos

Este amor que te deu Deus?"

* * *

TRIGÉSIMA PRIMEIRA

Se Deus fez o mundo todo

Em sete dias precisos,

Espalhou homens a rodo,

Mas lhes negou paraísos.

* * *

TRIGÉSIMA SEGUNDA

Nunca dou ponto sem nó

Em catiras com vizinho:

Levo tombo uma vez só;

Na segunda, vou sozinho.

* * *

TRIGÉSIMA TERCEIRA

Escorre à ponta dos cílios

Lágrimas desde o infinito...

Amor de mãe pelos filhos

É o maior e o mais bonito.

* * *

TRIGÉSIMA QUARTA

Um pai zela de dez filhos,

Mas dez não zelam d'um pai...

Feito trem fora dos trilhos,

Ninguém sabe aonde vai.

* * *

TRIGÉSIMA QUINTA

De dois dedos de prosa

A garrafas de poesia!...

A conversa é mais gostosa

Quando a cachaça a inicia.

* * *

TRIGÉSIMA SEXTA

Atrás da porta outro escuta

O segredo que se esconde...

Quando envolve uma disputa,

Punhal vem sem saber d'onde.

* * *

TRIGÉSIMA SÉTIMA

Cai a máscara do falso;

Embarga a voz do falaz.

A verdade é cadafalso

Do ardiloso contumaz.

* * *

TRIGÉSIMA OITAVA

Não sei se me calo ou falo,

Mas quem só serve, servo é...

Enquanto existir cavalo

São Jorge não anda a pé!

* * *

TRIGÉSIMA NONA

Quem tem dois pássaros voando,

Mas nenhum na sua mão,

Sonha ter de quando em quando

Posse da própria ilusão.

* * *

QUADRAGÉSIMA

Não há erro mais humano,

Que fazer a coisa certa.

Se é no mundo tudo engano,

Dá-se mal quem o conserta.

* * *

QUADRAGÉSIMA PRIMEIRA

No sertão da minha terra,

Passa boi, passa boiada...

O olhar nos longes da serra;

Além da curva da estrada.

* * *

QUADRAGÉSIMA SEGUNDA

O ninho do joão-de-barro

No alto do jacarandá.

Parece um tanto bizarro

Quando morador não há.

* * *

QUADRAGÉSIMA TERCEIRA

Pega o boi com chifre e tudo

Quem cuida da própria vida.

Demanda trabalho e estudo

O fazê-la bem vivida!...

* * *

QUADRAGÉSIMA QUARTA

Conta o milagre do santo,

Mas não conta o milagreiro.

Gratidão não chega a tanto

Quando a graça é mais dinheiro...

* * *

QUADRAGÉSIMA QUINTA

-- “Aqui, um conto de réis!

Ali, um milhar de reais!

Se se vão dedos e anéis

Nem já os reis são reais...

* * *

QUADRAGÉSIMA SEXTA

A ocasião faz o ladrão;

A aventura faz o herói...

É, n'uma história, o vilão

O que nunca se condói.

* * *

QUADRAGÉSIMA SÉTIMA

Juventina tem cem anos;

Dona Mocinha, noventa...

Quem faz alegres seus planos

É mais jovem que aparenta.

* * *

QUADRAGÉSIMA OITAVA

Se é trovador quem faz trovas

Penso eu ser um, afinal.

Tu que lês ora o comprovas

Para o bem ou para o mal...

* * *

QUADRAGÉSIMA NONA

Venda "secos e molhados"

Com cadeiras na calçada...

Onde chegamos cansados

A cerveja é mais gelada.

* * *

QUINQUAGÉSIMA

Fico até mais crente ao vê-la

Vir em roupas de ver Deus,

Quando reza na capela

Para si e para os seus.

* * *

QUINQUAGÉSIMA PRIMEIRA

Mas, se é muito grande o mundo,

Ainda maior o Universo...

O olhar mais largo e profundo

Cabe todo n'um só verso.

* * *

QUINQUAGÉSIMA SEGUNDA

Bem diziam os antigos:

-- "Tudo o que viste, Deus viu!

Ele quem com mil perigos

Distingue o bravo do vil."

* * *

QUINQUAGÉSIMA TERCEIRA

Vire e mexe um vem e diz

Para tudo ter respostas.

Triste quem quer ser feliz,

Com receitas, não apostas...

* * *

QUINQUAGÉSIMA QUARTA

Um pé de laranja lima

Carregado de florzinhas,

Eu olho de baixo a cima

À procura de joaninhas.

* * *

QUINQUAGÉSIMA QUINTA

Andorinha faz verão,

Quando em bando, não sozinha!

Uma só é solidão;

Uma é só andorinha.

* * *

QUINQUAGÉSIMA SEXTA

Quem pode ter qualquer um

Não raro não quer ninguém.

Antes quer, sem pejo algum,

Todo mundo em vez d'alguém.

* * *

QUINQUAGÉSIMA SÉTIMA

Trago um arranjo de flores

Para roubar-te um sorriso.

Se em teus olhos vejo amores,

Tenho tudo qu'eu preciso!

* * *

QUINQUAGÉSIMA OITAVA

Papo de cerca-lourenço...

Conversa p'ra boi dormir...

Quando o discurso é extenso

Se concorda sem ouvir.

* * *

QUINQUAGÉSIMA NONA

Se alguém anda tão-somente

Sem dar conta do que faz,

Dá um passo para frente

E dois passos para trás.

* * *

SEXAGÉSIMA

O fogo que em vão atiço

Saltou longe do braseiro...

É assim quando o feitiço

Vira contra o feiticeiro!

* * *

SEXAGÉSIMA PRIMEIRA

Dias há em qu'eu me sinto

De costas p'ra própria vida.

Tudo parece indistinto,

Já frustrado de saída...

* * *

SEXAGÉSIMA SEGUNDA

Nas voltas que dá o rio;

Nas voltas que o rio dá:

Canoa em remanso frio

É toda a beleza que há!

* * *

SEXAGÉSIMA TERCEIRA

Põem a verdade de lado

Quando razão querem ter!

Jamais será encontrado

O que já não se quer ver...

* * *

SEXAGÉSIMA QUARTA

Corria à boca miúda

A última d’algum incauto:

Quem nunca a ninguém ajuda

Cai no chão olhando pr’o alto!

* * *

SEXAGÉSIMA QUINTA

À meia noite era meia lua

Brilhando sobre a cidade.

Andarilhos pela rua,

Corações pela metade.

* * *

SEXAGÉSIMA SEXTA

Mas quem me ilumina o rosto

E parte o seu pão comigo,

A este acompanho com gosto;

A este que chamo de amigo.

* * *

SEXAGÉSIMA SÉTIMA

As paredes têm ouvidos;

As janelas, muitos olhos.

A portas fechadas, ruídos

Escapam pelos ferrolhos...

* * *

SEXAGÉSIMA OITAVA

O coração é tambor

Que bate desatinado...

Mil vezes morre d'amor

O que vive enamorado.

* * *

SEXAGÉSIMA NONA

Têm tido mais alegrias

Os últimos que os primeiros;

Aqueles têm fantasias;

Estes, apenas dinheiros...

* * *

SEPTUAGÉSIMA

Ter erudição a uns soa

Como coisa rara e nobre,

Mas a maus olhos destoa,

Qual seda vestindo pobre.

* * *

SEPTUAGÉSIMA PRIMEIRA

Conto quarenta anos feitos:

Já vi e vivi um tanto.

Passos tortos fiz direitos...

Sou bento mas não sou santo!

* * *

SEPTUAGÉSIMA SEGUNDA

Vou para a festa correndo;

Volto para casa andando...

Vejo o dia amanhecendo

Em folias vez em quando.

* * *

SEPTUAGÉSIMA TERCEIRA

Tem dia que não é dia:

Não houve aqui vencedor...

Ninguém é na hora tardia

Nem caça nem caçador.

* * *

SEPTUAGÉSIMA QUARTA

Depois de posto em garrafa

E de cruzar todo o oceano,

Um vinho me afogue a estafa

E alumbre o meu desengano!

* * *

SEPTUAGÉSIMA QUINTA

Antes cedo do que tarde...

Antes tarde do que nunca!

Embora às vezes se atarde,

O amor de flores se junca.

* * *

SEPTUAGÉSIMA SEXTA

Não me engano nem me iludo

Em descrer dos olhos meus:

O crédulo crê em tudo;

O crente só crê em Deus.

* * *

SEPTUAGÉSIMA SÉTIMA

Um que nem bem vai embora

E já fala em vir de volta...

Triste de quem sem demora

Anda com a língua solta.

* * *

SEPTUAGÉSIMA OITAVA

Isso d'escrever poesia

Para uns é café pequeno.

Esses não têm alegria

Nem o semblante sereno.

* * *

SEPTUAGÉSIMA NONA

Sem-vergonha aqui é mato:

Dá em tudo que é lugar!

O que de manhã eu cato,

À tarde torna a brotar...

* * *

OCTOGÉSIMA

Salamaleques à parte,

O respeito e a cortesia,

Antes são refinada arte

Que custosa fantasia..

* * *

OCTOGÉSIMA PRIMEIRA

Quem dá o que não possui

Perde até o que não tem.

Não se sabe mas se intui

O lugar que lhe convém.

* * *

OCTOGÉSIMA SEGUNDA

O amor é pássaro arisco,

Que se afasta quando acuado.

Sabe em cada olhar um risco

E em cada sorriso um fado.

* * *

OCTOGÉSIMA TERCEIRA

Fidalgo de meia pataca!

Puto sem eira nem beira!!

Falando igual maritaca

Um caminhão de besteira...

* * *

OCTOGÉSIMA QUARTA

Se segunda à sexta eu busco,

Sábado e domingo eu acho:

Nas sombras d'um lusco-fusco,

Do arrebol o último facho.

* * *

OCTOGÉSIMA QUINTA

Vez em quando vou à forra

Contra as mazelas da vida:

Ainda que viva ou morra,

Antes tê-la bem vivida!

* * *

OCTOGÉSIMA SEXTA

Eu -- mais dia, menos dia --

Parto d'esta p'ra melhor...

Mas fiz tudo o que podia

Com fé, esperança e amor.

* * *

OCTOGÉSIMA SÉTIMA

Perdem as folhas o viço

Quando vem no outono o frio.

Antes fosse apenas isso,

Mas junto com ele o estio...

* * *

OCTOGÉSIMA OITAVA

Amanheço na esperança

E anoiteço em desespero...

Minh'alma jamais descansa,

Querendo tudo que quero.

* * *

OCTOGÉSIMA NONA

Molha tolos fina chuva,

Que nos pega de surpresa:

Cai como à mão uma luva,

Tua orvalhada beleza.

* * *

NONAGÉSIMA

Ignora a dor d'este mundo

Quem vive só de aparências.

Qualquer olhar mais profundo

Evitam as vãs consciências.

* * *

NONAGÉSIMA PRIMEIRA

À custa d'algum versinho,

Perdia a hora vez em quando...

A manhã em que escrevinho,

Cheira a café fumegando.

* * *

NONAGÉSIMA SEGUNDA

Em teus olhos vejo estrelas;

Em teu sorriso, promessas...

Mas me negas conhecê-las

N'esse silêncio que expressas.

* * *

NONAGÉSIMA TERCEIRA

Além do bem e do mal,

As razões do coração

Pesam mais do que, em geral,

Qualquer razoável razão.

* * *

NONAGÉSIMA QUARTA

Nada como um outro dia

Para se entender o havido.

Quem ontem riu d'alegria,

Hoje está entristecido...

* * *

NONAGÉSIMA QUINTA

Temo que a estrada da vida

Após muito caminhar

Dê n'um beco sem saída

Ou mesmo em nenhum lugar...

* * *

NONAGÉSIMA SEXTA

Ser feliz -- quer sim; quer não --

É mais empenho que sorte:

Uns buscam ser na ilusão;

Outros, só depois da morte.

* * *

NONAGÉSIMA SÉTIMA

Busca alegria absoluta,

Mas Liberdade primeiro!

Melhor um dia de luta

Do que mil de cativeiro...

* * *

NONAGÉSIMA OITAVA

Às letras eu me dedico

Por mais e melhor saber.

Não que me façam mais rico,

Sim me ensinem a viver.

* * *

NONAGÉSIMA NONA

-- "A quantas andam as trovas

Com que costumas poetar?"

-- "São noventa e nove novas

N'esse livro de folhear."

Betim - 12 05 2017