Em concursos públicos, o critério utilizado para determinar se um candidato tem direito a participar das vagas reservadas para pessoas negras baseia-se nas características físicas visíveis

Em concursos públicos, o critério utilizado para determinar se um candidato tem direito a participar das vagas reservadas para pessoas negras baseia-se nas características físicas visíveis, como a cor da pele e traços faciais, e não apenas na sua herança genética ou ascendência.

Vejamos a situação posta:

João inscreveu-se em concurso público para o cargo de auditor fiscal em Monte Sião, Minas Gerais. Ele se candidatou às vagas reservadas para negros, tendo se declarado como pardo. João foi aprovado em 1º lugar nas vagas reservadas para negros. Ele foi então convocado para se submeter a um procedimento chamado de “aferição da condição autodeclarada”, a ser realizado por uma comissão especial. Vale ressaltar que esse procedimento estava previsto no edital, que afirmava que o critério de orientação para a confirmação do direito à cota era o fenótipo, e não meramente o genótipo ou a ancestralidade do candidato.

Primeira pergunta: isso é possível? O edital do concurso pode exigir que o candidato autodeclarado preto ou pardo se submeta a uma banca de heteroidentificação?

Não tenho a menor dúvida de que não só pode como deve.

É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa. STF. Plenário. ADC 41/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 8/6/2017 (Info 868).

O critério da autodeclaração é, em princípio, válido. Isso porque deve-se respeitar as pessoas tal como elas se percebem. Entretanto, é possível também que a Administração Pública adote um controle heterônomo, até mesmo para evitar abusos na autodeclaração.

Exemplos desse controle heterônomo: exigência de autodeclaração presencial perante a comissão do concurso; exigência de apresentação de fotos pelos candidatos; formação de comissões com composição plural para entrevista dos candidatos em momento posterior à autodeclaração.

Segunda pergunta: o que é fenótipo e genótipo?

• Fenótipo: refere-se às características observáveis de um indivíduo, como cor da pele, textura do cabelo, traços faciais etc. É o fenótipo que é considerado nos concursos públicos para determinar se um candidato é elegível para concorrer nas cotas raciais.

• Genótipo: refere-se à composição genética de um indivíduo, que inclui informação sobre seus ancestrais e herança genética. O candidato não pode ser incluído nas cotas raciais de concursos públicos com base unicamente no critério do genótipo.

Voltando ao caso concreto: A comissão de heteroidentificação não reconheceu João como pardo, sob o argumento de que ele não apresentava os respectivos traços fenotípicos. Afirmou a comissão: “Considerando a análise das imagens, verificou-se que o candidato, não apresenta traços fenotípicos negroides, que no seu conjunto ou isoladamente o remetam ao grupo destinatário da política de cotas.”

Inconformado, ele impetrou mandado de segurança alegando, dentre outros argumentos, que a Administração Pública, ao analisar se um candidato tem direito de concorrer à vagas reservadas para negros, não pode fazer uma a avaliação baseada no fenótipo do candidato, devendo analisar seu genótipo ou ancestralidade. Argumentou que seus ancestrais são negros e que, portanto, tem o genótipo de negro. O mandamus foi denegado (julgou improcedente o pedido).

Ainda inconformado, João interpôs recurso ordinário em mandado de segurança dirigido ao STJ: Constituição Federal. Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: II - julgar, em recurso ordinário: (..) b) os mandados de segurança decididos em única instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando denegatória a decisão;

O STJ, por óbvio, não acolheu os argumentos de João. O entendimento do STJ é o de que o critério de orientação para a confirmação do direito à concorrência especial deve se basear no fenótipo, e não meramente no genótipo, na ancestralidade do candidato. Nesse sentido: O critério de orientação para a confirmação do direito à concorrência especial há de fundar-se no fenótipo e não meramente no genótipo, na ancestralidade do candidato. STJ. 2ª Turma. AREsp 1.407.431/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 14/5/2019.

(...) IV. O Edital que regula o referido concurso público prevê a adoção do critério de fenotipia (e não do genótipo ou ancestralidade) - ou seja, a manifestação visível das características físicas da pessoa -, para a seleção de candidatos autodeclarados negros (pretos ou pardos), estabelecendo que a autodeclaração étnico-racial deve ser aferida por uma Comissão de Verificação, adotando, ainda, o sistema misto de identificação do sistema de cotas raciais, no qual o enquadramento do candidato como negro não é efetuado somente com base na autodeclaração do candidato, mas sim em uma posterior análise por comissão especial, especialmente designada heteroidentificação. (...) [VI. No caso, apesar da declaração da parte recorrente ser pessoa de etnia negra, a questão foi submetida, posteriormente, a uma Comissão para aferição dos requisitos, a qual, seguindo os termos do edital, não reconheceu a condição autodeclarada da autora, com base nos critérios fenotípicos. Diante do que ora sustenta, a análise da irresignação acerca do enquadramento nos requisitos para concorrência especial e da fundamentação do ato que determinou sua exclusão do concurso exigiria a dilação probatória, o que é sabidamente inviável na via escolhida, sem prejuízo das vias ordinárias. (...) STJ. 2ª Turma. AgInt no RMS 61.579/RS, Rel. Min. Assusete Magalhães, julgado em 27/6/2022.

Em suma: O critério de orientação para a confirmação do direito à concorrência especial funda-se no fenótipo, e não meramente no genótipo, na ancestralidade do candidato. STJ. 1ª Turma. AgInt nos EDcl no RMS 69.978-BA, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, julgado em 23/10/2023 (Info 14 – Edição Extraordinária).

Vale ressaltar que existem julgados do STJ nem admitindo mandado de segurança nesses casos quando o impetrante busca a reanálise de provas: É inadequado o manejo de mandado de segurança com vistas à defesa do direito de candidato em concurso público a continuar concorrendo às vagas reservadas às pessoas pretas ou pardas, quando a comissão examinadora de heteroidentificação não confirma a sua autodeclaração. STJ. 1ª Turma. RMS 58785-MS, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 23/08/2022 (Info 746).

No caso concreto acima explicado, João não pretendia a reanálise de provas, razão pela qual foi conhecido o mandado de segurança. Vale registrar, por fim, que o candidato só pode ser excluído de concurso público por não se enquadrar na cota para negros se houver contraditório e ampla defesa: A exclusão do candidato, que concorre à vaga reservada em concurso público, pelo critério da heteroidentificação, seja pela constatação de fraude, seja pela aferição do fenótipo ou por qualquer outro fundamento, exige o franqueamento do contraditório e da ampla defesa. STJ. 2ª Turma. RMS 62040-MG, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 17/12/2019 (Info 666).

Guaxupé, 10/04/24.

Milton Biagioni Furquim

Milton Furquim
Enviado por Milton Furquim em 10/04/2024
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