Justiça Militar – uma justiça de exceção ?

A Justiça Militar Estadual ainda continua recebendo críticas segundo as quais teria a sua origem em um regime de exceção, que foi instalado no Brasil no dia 31 de março de 1964 em decorrência de uma revolução, conforme constou do preâmbulo da Constituição Federal outorgada no ano de 1967, que afastou do exercício do Poder Executivo o então Presidente da República João Goulart.

Uma análise da história em seu sentido técnico e científico demonstra de forma clara que a Justiça Militar Estadual não surgiu no período de 1964, e nem mesmo serviu aos interesses do governo autoritário que se instalou naquele momento, e que não teria respeitado às garantias fundamentais do cidadão.

A Justiça Militar no Brasil existe de 1808, quando D. João VI veio para o Brasil juntamente com a família Real, deixando a Corte sediada em Lisboa em decorrência das hostilidades que estavam sendo praticado pelo General Napoleão Bonaparte, Imperador dos Franceses e que impôs o bloqueio continental contra a Inglaterra.

A Justiça Militar Federal possui previsão constitucional desde a Constituição Federal de 1934, e a Justiça Militar Estadual desde a Constituição Federal de 1946, ou seja, em data muito anterior ao movimento de 1964. Os juízes auditores militares integram o Poder Judiciário, Federal ou Estadual, com todas as garantias asseguradas aos magistrados, vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos. A Constituição Federal de 1988 seguindo a tradição constitucionalista inaugurada em 1934 novamente fez previsão expressa tanto no aspecto federal como estadual da Justiça Militar.

Afirmar que a Justiça Militar Estadual é originária do regime de exceção é contrariar os textos constitucionais que foram promulgados durante a República instalada no dia 15 de novembro de 1889. A Justiça Militar possui autonomia e independência e não pertence a Polícia Militar ou ao Corpo de Bombeiros Militares. A Justiça Militar integra o Poder Judiciário e no decorrer dos anos vem cumprindo com as suas funções constitucionais.

É importante se esclarecer ainda, para se evitar a divulgação de dados divorciados da realidade, que no período de 1964 a 1988 os crimes contra a segurança nacional não eram julgadas perante a Justiça Militar Estadual, mas na Justiça Militar Federal, segundo o disposto na Lei de Segurança Nacional. A nova Constituição Federal determinou de forma expressa que estes crimes atualmente sejam julgados perante a Justiça Federal.

Os acusados que responderam a processo-crime perante a Justiça Militar Federal por terem violado em tese as disposições da Lei de Segurança Nacional tiveram todas as prerrogativas processuais asseguradas de forma efetiva, como o direito à ampla defesa e o contraditório. Neste período, várias pessoas foram absolvidas perante a Justiça Castrense, que foi instituída em nosso país por meio de Alvará Régio no ano de 1808, com a vinda da família Real Portuguesa.

O primeiro Tribunal que o Brasil conheceu foi o Conselho Militar e de Justiça que passou a promover a prestação jurisdicional no então Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves, permitindo que a antiga Terra de Vera Cruz tivesse um Tribunal próprio para julgar os seus nacionais.

A primeira liminar que foi concedida em sede de habeas corpus foi deferida pelo Superior Tribunal Militar, S.T.M, que garantiu os direitos e garantias fundamentais de um cidadão de forma efetiva, apesar da ausência de previsão legal deste instituto, demonstrando a independência e autonomia da Justiça Especializada.

No Estado de Minas Gerais, a Justiça Militar Estadual no ano de 2002 completou 65 anos de existência. Com base neste fato, qual o fundamento para se afirmar que a Justiça Militar possui origem no regime que foi instalado no Brasil no ano de 1964?

O Estado de São Paulo que juntamente com o Estado de Minas Gerais e o Estado do Rio Grande do Sul possui um Tribunal de Justiça Militar teve o seu Tribunal especializado instalado no dia 08 de janeiro de 1937, por meio da Lei n º 2.856. A respeito da criação da Justiça Militar no Estado de São Paulo, Ronaldo João Roth preceitua que, “De se registrar, outrossim, que a criação do Tribunal de Justiça ocorreu em 2.2.1874 (Tribunal de Relações de São Paulo e Paraná), tendo, efetivamente, ocorrido a instalação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em 8.12.1891, fato esse que permite concluir que o Tribunal de Justiça Militar foi o segundo Tribunal criado e instalado no Estado de São Paulo. (Roth, Ronaldo João. Justiça Militar e as Peculiaridades do Juiz Militar na Atuação Jurisdicional, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003, p. 22).

No Estado do Rio Grande do Sul, o Tribunal de Justiça Militar foi criado em 1918, ou seja, em um período muito anterior aos movimentos de 1930 e 1964. Segundo João Carlos Bona Garcia, “A primeira ata do Conselho – o primeiro Tribunal Militar criado na República – data de 19 de junho de 1918. O Decreto de 13 de março de 1924 criou o cargo de Juiz-Auditor civil, de livre nomeação do Presidente do Estado, para funcionar em primeiro grau, junto ao Conselho Militar. (Garcia, João Carlos. Tribunal Militar do Estado do Rio Grande do Sul : 85 anos in Revisa da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, ano VII, número 41, maio/jun de 2003, p. 18).

A Justiça Militar possui uma função essencial no Estado democrático de Direito, uma vez que exerce de forma efetiva o controle das atividades desenvolvidas pelas forças policiais, que são responsáveis pela preservação dos direitos e garantais fundamentais do cidadão.

O fato de a Justiça Castrense ser um órgão colegiado em 1 º grau não configura nenhuma violação a tradição constitucional e processual. Nos países europeus, que seguem a tradição da família romano-germânica, a mesma observada pelo Brasil, como por exemplo, a Itália e a França, o juízo de 1 ª instância é constituído por um órgão colegiado, como muito bem retratou Piero Calamandrei em sua obra “Eles os juízes vistos por um advogado”.

Na Justiça Militar não existe nenhum privilegio aos jurisdicionados, mas um efetivo controle dos atos policiais que são praticados, condenando-se o acusado quando existem provas que demonstrem de forma efetiva a sua culpabilidade e absolvendo o acusado quando não existem elementos que possam levar a certeza da violação dos atos descritos na denúncia. Afinal, este não é o fundamento da teoria geral do processo que se aplica no Estado democrático de Direito.

A participação dos militares na composição do colegiado é essencial, uma vez que estes auxiliam o juiz auditor com os seus conhecimentos profissionais permitindo a realização de um julgamento justo e um controle efetivo das atividades desenvolvidas pelo militares estaduais.

A Justiça Militar é uma justiça especializada como a Justiça do Trabalho e a Eleitoral, e na maioria dos Estados-membros da Federação cumpre com as suas funções previstas na Lei de Organização Judiciária e na Constituição Federal, com um orçamento inferior a 1% do orçamento destinado ao Poder Judiciário Estadual.

Os crimes militares se fossem remetidos a uma Vara Criminal Comum exigiriam muitas vezes conhecimentos que não são peculiares aos operadores do direito, como o significado de uma deserção, insubmissão, motim, abandono de posto, crimes contra a administração militar, desacato contra superior, crime contra o comandante do navio, oficial de quarto, dia, entre outros ilícitos próprios da vida na caserna.

Além disso, a vida militar possui particularidades próprias que devem ser preservadas em atendimento aos princípios da hierarquia e da disciplina, que são essências para o Estado democrático de Direito e a manutenção das instituições militares que são responsáveis pela preservação da lei e da ordem.

O Brasil não é o único país no Mundo que possui uma Justiça Militar. Outras nações possuem uma Justiça Militar, como por exemplo, os Estados Unidos da América, Portugal, França, Inglaterra entre outros. Além disso, as forças policiais uniformizadas e organizadas com base na hierarquia e na disciplina existem na maioria dos países civilizados.

O Estado democrático de Direito não impede a existência de uma Justiça Militar, ou mesmo de forças policiais uniformizadas. O Estado de Direito pressupõe o respeito à lei para que os grupos sociais possam conviver em harmonia, o que permite inclusive a existência de uma lei de segurança nacional para julgar os crimes contra o Estado.

A Justiça Militar Estadual possui previsão constitucional e uma função essencial no Estado de Direito, a qual vem sendo cumprida no decorrer dos anos. A população busca uma ordem pública efetiva que é garantida pelas forças policiais, e a Justiça Militar assegura que a lei seja observada e respeitada pelos integrantes das Forças Auxiliares no exercício de suas funções constitucionais.

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