Lei do Superendividamento (Lei 14.181/2021). Código consumerista. Consumidor vulnerável e hipervulnerável.

Este texto foi escrito por Célio Leite. Interessante e importante, por isso o reproduzo

Lei do Superendividamento (Lei 14.181/2021). Código consumerista. Consumidor vulnerável e hipervulnerável.

Em 2021, foi editada a Lei do Superendividamento (Lei 14.181/2021). Envolve lei de singular importância, visto que é uma lei que atualiza de forma necessária o CDC, harmonizando-o as novas realidades.

O superendividamento é um dos maiores problemas sociais além de sua disciplina e peculiaridades jurídicas. O ordenamento jurídico brasileiro acordou ainda que tardiamente para o problema em relação ao direito alienígena. Tínhamos cerca de 70 milhões de brasileiros, em 2022, endividados. Considerável parte é vulnerável e, muitos, hipervulneráveis.

Por definição, todos os consumidores são vulneráveis, conforme dicção da Resolução nº 39/248, editada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em sua 106ª Sessão Plenária, realizada no ano de 1985.

No entanto apesar do reconhecimento da vulnerabilidade de todos os consumidores, há grupos que demonstram uma fragilidade ainda mais nítida em no que tange aos fornecedores de produtos e serviços, isto é, pessoas ainda mais vulneráveis à atuação desse sujeito da relação de consumo.

São os consumidores hipervulneráveis, em outras palavras, aqueles que, em razão de sua especial condição, como idosos, crianças, deficientes mentais, ou pessoas sensíveis ao consumo de determinadas substancias etc., ficam ainda mais vulneráveis às práticas comerciais dos fornecedores. Nesse sentido temos entendimento do jurista, magistrado, ambientalista e professor universitário brasileiro, atual ministro do Superior Tribunal de Justiça Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, um dos maiores consumeristas do Brasil inserto no seu voto no REsp 586.316/MG. Destacamos alguns didáticos trechos infra:

“Ao Estado Social importam não apenas os vulneráveis, mas sobretudo os hipervulneráveis, pois são esses que, exatamente por serem minoritários e amiúde discriminados ou ignorados, mais sofrem com a massificação do consumo e a ‘pasteurização’ das diferenças que caracterizam e enriquecem a sociedade moderna.

(…)

O Código de Defesa do Consumidor, é desnecessário explicar, protege todos os consumidores, mas não é insensível à realidade da vida e do mercado, vale dizer, não desconhece que há consumidores e consumidores, que existem aqueles que, no vocabulário da disciplina, são denominados hipervulneráveis, como as crianças, os idosos, os portadores de deficiência, os analfabetos e, como não poderia deixar de ser, aqueles que, por razão genética ou não, apresentam enfermidades que possam ser manifestadas ou agravadas pelo consumo de produtos ou serviços livremente comercializados e inofensivos à maioria das pessoas.

O que se espera dos agentes econômicos é que, da mesma maneira que produzem sandálias e roupas de tamanhos diferentes, produtos eletrodomésticos das mais variadas cores e formas, serviços multifacetários, tudo em atenção à diversidade das necessidades e gosto dos consumidores, também atentem para as peculiaridades de saúde e segurança desses mesmos consumidores, como manifestação concreta da função social da propriedade e da ordem econômica ou, se quiserem, uma expressão mais em voga, de responsabilidade social.” (negritos de ora)

No âmbito da proteção civil do consumidor, o CDC classifica no seu art. 39, IV, como abusiva a prática do fornecedor que “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços” (art. 39, IV).

Temos adicionalmente a previsão de sanções de natureza penal destinadas a garantir especial proteção aos hipervulneráveis, como a regra do art. 76, IV, b, que traz como uma das agravantes dos crimes tipificados pelo diploma consumerista ser o crime cometido “em detrimento de operário ou rurícola; de menor de dezoito ou maior de sessenta anos ou de pessoas portadoras de deficiência mental interditadas ou não”.

Em seara legislativa, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)é, um bom exemplo de um diploma normativo destinado à ampla proteção e defesa desse segmento social.

Em relação aos idosos, além das normas consumeristas os idosos contam com a proteção conferida pelo Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03), cujo art. 20 preceitua: “O idoso tem direito a educação, cultura, esporte, lazer, diversões, espetáculos, produtos e serviços que respeitem sua peculiar condição de idade”. Além disso, é conferida uma especial proteção contra o aumento abusivo de mensalidades de seguros de assistência à saúde (planos de saúde), em razão de mudança de faixa etária – matéria exaustivamente tratada pela jurisprudência pátria.

Um outro exemplo envolve os portadores da Doença Celíaca, os quais apresentam intolerância ao glúten. Nesses casos, avulta para o fornecedor o dever jurídico de informar sobre a presença da substância nos alimentos. Sobre o tema, o STJ já se manifestou, ao julgar o REsp nº 722.940/MG, tendo o relator, ministro Castro Meira, destacado:

“São exatamente os consumidores hipervulneráveis os que mais demandam atenção do sistema de proteção em vigor. Afastá-los da cobertura da lei, com o pretexto de que são estranhos à ’generalidade das pessoas, é, pela via de uma lei que na origem pretendia lhes dar especial tutela, elevar à raiz quadrada a discriminação que, em regra, esses indivíduos já sofrem na sociedade. Ser diferente ou minoria, por doença ou qualquer outra razão, não é ser menos consumidor, nem menos cidadão, tampouco merecer direitos de segunda classe ou proteção apenas retórica do legislador.” (destaque nosso).

Sem pretender exaurir o tema e sendo meramente exemplificativo, os exemplos citados acima são apenas alguns, e servem para afirmar a vastidão que envolve a questão, já que uma das principais características dos sistemas protetivos de vulneráveis é a sua construção fundada em cláusulas abertas.

O objetivo da lei é fundamentalmente garantir a observância do superprincípio da dignidade humana. Promover a proteção e defesa de todos contra agressões alheias, notadamente contra aqueles que atuam com objetivo de lucro, é um dever do Estado. Mas, esse dever toma proporções colossais e grandiosas quando se trata de proteger os desvalidos; os indefesos; os verdadeiramente invisíveis aos olhos de toda a sociedade, ou seja, os hipervulneráveis.

Voltando ao tema do superendividamento, o objetivo da lei é primariamente o de prevenir o endividamento. A inserção das regras sobre a matéria no corpo do CDC favorece, sem dúvida, uma interpretação integrada e harmônica com a principiologia desenvolvida ao longo de mais de 30 anos de vigência do CDC e que teve como inspiração original as normas e princípios contidos na Carta Política. O modo atual de legislar é, sobretudo, através de objetivos e fins. As legislações mais importantes do Brasil nos últimos anos, como o Marco civil da internet e a LGPD, são fundamentalmente principiológicas.

Por fim, a lei aludida visa assegurar um mínimo existencial aos devedores, busca-se prevenir o superendividamento, por meio do crédito responsável.

A Lei n. 14.181/2021 promove a dignidade humana do consumidor, dando-lhe uma nova chance de quitar sua dívida.

Existem, em linhas gerais, no direito comparado, dois grandes modelos de tratamento do superendividado: a) o americano (fresh start); b) o europeu (com o plano de pagamento).

O modelo americano (fresh start), comum em países da common law, envolve o o perdão das dívidas, após a liquidação dos bens, para que o consumidor possa, o quanto antes, recomeçar a vida ativa de consumo.

O modelo o europeu (com o plano de pagamento), envolve um plano de pagamento, englobando todos os credores, mantendo-se o mínimo existencial. A rigor, a tendência hoje - como ocorre com a maioria dos institutos e categorias de países distintos - é haver um diálogo entre os modelos, sem concepções absolutas

Neste sentido o art. 54-A do CDC, em seu § 1°, conceitua:

"Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação".

O antigo axioma latino (omnis definitio periculosa est) recomenda que o legislador se abstenha de fazer definições. Hodiernamente, ante a complexidade de certas relações jurídicas, parece que a antiga recomendação está perdendo força. As leis do século XXI recorrem frequentemente às definições como é o caso, verbi gratia, do Marco Civil da internet e da LGPD.

O conceito da lei sub examine é correto, e técnico: a) o superendividado há de ser pessoa física; b) deve estar de boa-fé; c) as dívidas devem ser de consumo, isto é, devem se originar de uma relação de consumo em sentido estrito; d) o mínimo existencial é critério que deve nortear todos os aspectos do superendividamento (um plano de pagamento que não observar esse critério será nulo).

O art. 104-A do CDC, já disciplina a questão do tratamento do superendividado.

Excluem-se do processo de repactuação as dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural (CDC, art. 104-A, § 1o). Os planos de pagamento poderá ser voluntariamente acordado e poderá, também, ser compulsório. Será compulsório quando for judicialmente determinado.

Se não houver êxito no acordo com credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado (CDC, art. 104-B).

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Milton Furquim
Enviado por Milton Furquim em 01/11/2023
Código do texto: T7921900
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