Adam Smith é ou não um liberal?

Ao indagar se Adam Smith é ou não um liberal, é importante situar o liberalismo no tempo ao invés de submeter seu pensamento ao sistema econômico da contemporaneidade. O autor de A Riqueza das Nações vive em um período de desenvolvimento industrial, revoluções técnico-científicas e de novas dinâmicas coloniais, como expresso na Introdução de sua obra. Nesse cenário, o autor visualiza os acontecimentos julgando-os contrários à moral vigente, o que o coloca em uma posição de impotência diante de sua realidade, permeada de contradições explicadas pelo embate entre a filosofia moral e a economia política. Para exemplificar essa alegação, pode-se pensar na descrição acerca da insensatez e da injustiça da exploração imperialista e da monopolização comercial por parte de países europeus, indicada no final do livro IV. Ademais, Smith afirma que uma sociedade jamais poderá ser florescente e feliz se a maioria de seus membros se encontra em situação de miséria, o que perceptivelmente demonstra sua preocupação com as classes inferiores em um argumento fortemente antiliberal.

Em seu livro I, Smith escreve minuciosamente sobre o advento da divisão social do trabalho, que possibilitou maior aperfeiçoamento e produtividade em razão da otimização do tempo. Para isso, o autor utiliza o exemplo da fábrica de alfinetes, afirmando que além de a mecanização facilitar o trabalho, em suas palavras ela também foi responsável por diversificar o trabalho contido em cada mercadoria e aponta o mercado como o regulador da riqueza gerada por tal dinâmica produtiva. Nesse sentido, a posse de terras enquanto característica do Estado feudal criticado por ele, já não era mais suficiente, mas sim deter manufaturas, que ele subdivide entre grandes e pequenas, comparando-as com o tamanho das cidades.

Sua posição nacionalista se verifica em relação ao progresso da Inglaterra, posto que do ponto de vista econômico, com o aumento da renda e do capital (amplamente contemplado por ele em seu segundo livro), a demanda de assalariados aumentaria, o que geraria um aumento da riqueza nacional e por conseguinte, o maior emprego de trabalhadores, cuja felicidade é essencial para o avanço econômico, por conta disso, Smith analisa que o trabalho excessivo defendido pelos liberais causaria prejuízos, enquanto que o trabalho moderado possui uma feição constante. Para além disso, o autor critica a opressão dos pobres pela desigualdades de cunho liberal, em um apelo de equidade. Embora o liberalismo não tenha a desigualdade humana como objetivo, o conjunto de seu aparato e de sua existência depende da supremacia de alguns sobre os demais. O Estado burguês é um princípio indispensável ao liberalismo, no entanto ele ainda não existia quando Smith escreveu seu livro em 1776, vindo a surgir somente com a Revolução Francesa em 1789, ou seja, Smith é anterior ao liberalismo em completude e incusive do ápice da revolução indutrial, vivenciando a transição para um novo tempo. Uma de sua fonte de crítica é em relação ao espírito de monopólio, que que também foi teorizado por Stuart Mill enquanto um fenômeno que aniquilaria o mercado e aboliria a concorrência, abrindo uma lacuna para a centralização de preços escolhidos arbitrarimente, que se consolida como um postulado do liberalismo moderno e uma afronta ao mercado enaltecido por Smith. Nesse sistema, os proprietários dos meios de produção se tornariam os governantes da humanidade, o que eles não devem ser, além de os preços não se formarem diante dos olhos do povo, criando uma diferença considerável entre o preço natural e o preço pelo qual o produto é vendido.

Diante disso, uma passagem curiosa de seu texto, é sua alusão à desorganização da classe trabalhadora em detrimento da organização da poderosa classe detentora dos meios de produção, comparados a exércitos, o que indica em minha concepão, uma ideia embrionária de sindicato, uma vez que se refere a uma organização intraclasses.

No livro IV, se torna nítido que Smith não se insere no critério liberal, visto que já inicia o primeiro capítulo definindo a finalidade da economia política: proporcionar renda e meios de subsistência ao povo de forma a lhe garantir a satisfação de suas necessidaes ou um meio para adquiri-las, de forma a suprir tanto o Estado e o soberano quanto a coletividade através dos serviços públicos. O autor identifica ainda a agricultura e o mercantilismo como dois sistemas de economia política.

No entanto, Adam Smith rompe com um princípio mercantil ao afirmar que a riqueza de um país não deve ser contabilizada somente a partir do ouro e da prata, como ocorre em países de tradição metalista, como Portugal e Espanha citados por ele. As terras, casas e bens de consumo advindos do trabalho também devem ser considerados como elementos de riqueza, mas muitas vezes são desconsiderados do ideal econômico pautado no dinheiro, que constitui um instrumento de troca e um parâmetro de valor a partir do qual todas as outras mercadorias são estimadas.

Smith defende o comércio exterior na medida em que ele escoa excedentes e angaria produtos com demanda interna, detalhando as vantagens de um comércio por água. Nesse trecho, seu pensamento moral se expressa ao afirmar que o comércio deveria ser uma fonte de união e amizade, ao invés da fonte de discórdias na qual ele se tornou em razão das ambições e dos interesses humanos guiados pelo liberalismo. O comércio é inerente à natureza humana e é imprescindível, posto que o homem deixou de produzir a totalidade daquilo que necessita para a sua sobrevivência. Um ponto importante de se ressaltar é sua defesa sobre as altas taxas que incidem sobre os produtos importados, como forma de estimular a indústria doméstica, que é mais vantajosa ao indivíduo em primeira instância e posteriormente à sociedade. Nisso se verifica uma expressão de um bem coletivo que não teve em sua origem uma benevolência volutária.

Sua postura anticolonial compactua com o fato de não ser um liberal, posto que defende a autonomia das colônias em relação às leis e à forma de governo nelas instituído, vendo-as como Estados aptos a se tornarem independentes e é contrário ao extermínio de povos nativos, afirmando que as classes mais vulneráveis devem ser tratadas com maior humanidade. Por outro lado, o autor indica um ponto positivo da ocupação de países pouco desenvolvidos por países civilizados em razão da possibilidade moral de aliança entre os conhecimentos nativos e as tecnologias trazidas. Smith afirma que a abundância e a renda da terra são alavancadores da prosperidade colonial, em contraste com o latifúndio interesseiro que destrói o fruto do trabalho da terra. Ele discorre muito brevemente sobre a escavidão, como fruto da imposição de leis em um governo arbitrário, e na terceira parte do capítulo final do livro IV, analisa os privilégios obtidos por países europeus na colonização da América, como o sistema de comércio exclusivo, que assegurava baixos preços aos colonizadores.

Sua visão difundidamente considerada individualista e nacionalista se defronta com argumentos próprios que analisam o elemento político na economia como benéfico, e a solidariedade não somente entre indivíduo-indivíduo ou indivíduo-Estado, mas também entre as nações vizinhas, uma vez que identifica vantagens na redução de taxas aos países, ainda que não busque necessariamente aprofundar a divisão social do trabalho no exterior.

Em um plano oposto, o autor reitera o egoísmo humano ao observar os interesses da classe comerciante, qua contrastam com a ideia de equivalência na balança comercial, de caráter distributivo e com a participação ativa dos cidadãos na economia de seu país. Dentre tantas ambiguidades insuperáveis de seu pensamento, está tanto a preocupação com o lucro dos proprietários dos meios de produção quanto com a classe trabalhadora e marginalizada, refém das desigualdades. Diferentemente de Mill, que escreve em um tempo posterior, de maiores certezas configuradas, e de Marx, que já inclui o adjetivo "capitalista" em seu pensamento no capítulo 24 de O Capital, Smith inicia a análise das atribulações de seu tempo, encontrando-se moralmente impossibilitado de encontrar saídas e soluções práticas aos problemas visualizados por ele. Pode-se por fim, concluir que em nenhum momento de sua obra, Smith declarou-se abertamente um adepto do liberalismo, ele pôs em evidência a realidade à sua frente, sendo um equívoco tê´-lo como um liberal de seu tempo. Após a análise feita com base na leitura de seu livro, não o identifico enquanto um antiliberal no sentido radical do termo, mas sim como um não-liberal, visto que a caracterização de antiliberal pressupõe uma refutação a um sistema já instituído, o que inexiste em completude na época de Smith. Pode-se dizer então que ele não concordava com aquela nova realidade que se abria diante de seus olhos para a qual se esforçou bravamente em lançar um último suspiro moral.

Disciplina: Economia Política

Isadora Welzel
Enviado por Isadora Welzel em 26/12/2022
Código do texto: T7679726
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