Regulamento Disciplinar Militar e Suas Inconstitucionalidades

O art. 144, da CF, diz que, "A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos". Com base no dispositivo mencionado, percebe-se que a segurança pública é uma função essencial do Estado, o qual deve zelar pela integridade física dos seus cidadãos, evitando a ocorrência das infrações penais. Devido à importância desta atividade, o Estado não pode privatizar a segurança, ao contrário de outros setores que são transferidos para a iniciativa privada, e nem mesmo colocá-la em um segundo plano sem os investimentos necessários para o combate à criminalidade.

Em atendimento a CF, a segurança pública é exercida pelos seguintes órgãos: polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares. Cada um deles possui suas competências delimitadas no texto constitucional, e as demais atribuições previstas em leis infra-constitucionais. Entre os órgãos mencionados no art. 144, da CF, apenas dois possuem estética militar, os corpos de bombeiros e a polícia militar, com graduações e postos semelhantes aos integrantes do Exército.

A Polícia Militar exerce atividades de policiamento ostensivo e não atividades voltadas para a preservação da segurança nacional, que por força do art.142, caput, da CF, é prerrogativa das Forças Armadas. Somente em caso extremos, é que os integrantes das Forças Auxiliares ficarão a disposição do Exército Nacional, art. 144, § 6º, da CF. Para dar atendimento a CF, a Polícia Militar tem investido no aprimoramento de seus diversos órgãos e de seus integrantes na busca de um melhor serviço a ser prestado a coletividade.

Na busca da melhoria do material humano, com a introdução de novas disciplinas nos cursos de formação de oficiais e formação de praças, muitas Corporações deixaram os regulamentos disciplinares fora das reformas, em desatendimento a CF. Os regulamentos disciplinares foram recepcionados pela vigente Constituição, mas existem disposições que se encontram em conflitos com as garantias asseguradas ao brasileiro e estrangeiro residente no país.

1. Regulamento disciplinar militar

Os policiais militares e bombeiros militares no exercício de suas atividades constitucionais ficam sujeitos a uma responsabilidade criminal, administrativa e civil, pelos danos que venham a causar à administração pública (civil ou militar) e a integridade física e patrimonial dos administrados. Ao desrespeitar uma disposição prevista no regulamento disciplinar, o policial militar comete o que se denomina de transgressão disciplinar militar.

A transgressão disciplinar militar pode ser entendida como sendo, toda ação ou omissão contrária ao dever militar, e como tal classificada nos termos do regulamento. Distingue-se do crime militar que é ofensa mais grave a esse mesmo dever, segundo o preceituado na legislação penal militar. São consideradas ainda, também, transgressões disciplinares, as ações ou omissões não especificadas no presente artigo e não qualificadas como crimes nas leis penais militares, contra os Símbolos Nacionais, contra a honra e o pudonor individual militar; contra o decoro da classe, contra os preceitos sociais e as normas da moral; contra os princípios de subordinação, regras e ordens de serviços, estabelecidas nas leis ou regulamentos, ou prescritas por autoridade competente (art. 8º, do Decreto n.º 76.322 de 22 de setembro de 1.975).

No entender Ana Clara Victor da Paixão, definir quais seriam tais ações ou omissões é tarefa que só poderia ser desempenhada pelos próprios detentores de tal atributo, que, no caso, são os policiais militares, como um todo, e não a pessoa do administrador militar ou comandante. O conceito de honra, pudonor e decoro é abstrato, relativo e pessoal: o que um indivíduo considera desonroso ou indecoroso, pode não o ser para os demais. Assim, verifica-se que a autoridade militar não tem sequer titularidade para preencher o tipo disciplinar contido na norma1.

Mas será que as normas contidas nos regulamentos disciplinares das Polícias Militares dos Estados membros da Federação foram recepcionadas pelo novo texto constitucional, e se encontram em consonância com o disposto nos preceitos que tratam dos direitos e garantias fundamentais do cidadão?

2. Normas disciplinares e suas origens

As Polícias Militares possuem suas raízes no decreto expedido pelo então regente Padre Antônio Diogo Feijó. A esse respeito, José Nogueira Sampaio observa que, "A Lei de 10 de outubro de 1831 que assim se formou, estendo às províncias a instituição dos guardas permanentes, significa o monumento básico das polícias militares estaduais".2 O Estado de São Paulo para dar atendimento ao decreto regencial criou em 15 de dezembro de 1831 por ato do Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar o seu Corpo Permanente de Guardas, com 100 homens na arma de infantaria e 30 homens na arma de cavalaria. A Força Policial criada nesse período passou a ter toda uma organização militar baseada na estrutura do Exército Nacional, com graduações e postos e responsabilidades decorrentes das funções que deveriam ser desenvolvidas.

Ao contrário dos agentes civis, os policiais militares ao praticarem uma falta administrativa, transgressão disciplinar, podem ter seu jus libertatis cerceado por um período de até 30 (trinta) dias, cumprindo a prisão em regime fechado, em xadrez existente nos quartéis. A transgressão disciplinar é classificada quanto a sua natureza em leve, média e grave, e essa graduação determina a dosimetria da sanção administrativa. Atualmente, pelos menos no Estado de São Paulo, os policiais militares em regra não ficam presos no xadrez, mas são recolhidos ao quartel sem poderem deixar à Organização Policial Militar (OPM), sob pena de praticarem crime militar.

3. Regulamento disciplinar e Constituição Federal

Antes do advento da CF de 1988, a maioria dos regulamentos disciplinares foram editados por meio de decretos expedidos pelo chefe do Poder Executivo (Governadores ou Interventores) nomeados pelo Presidente da República. No Estado de São Paulo, o regulamento disciplinar data de 09 de novembro de 1943, Decreto n.º 13.657, que foi expedido pelo então interventor Fernando Costa, nomeado pelo Presidente da República Getúlio Vargas. O regulamento disciplinar da Aeronáutica, Decreto n.º 76.322 , data de 22 de setembro de 1975.

Em atendimento ao princípio da recepção, os regulamentos disciplinares aprovados por meio de decretos foram recebidos pela nova ordem constitucional, como ocorreu com o Código Penal, Código de Processo Penal, Código Penal Militar, Código de Processo Penal Militar e outros diplomas legais. O fato destes diplomas legais terem sido recepcionados não significa que possam sofrer modificações em desacordo com o previsto na CF.

Ao tratar dos crimes militares e das transgressões disciplinares, a Constituição Federal no art. 5.º, inciso LXI, diz que, "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei". Com base no dispositivo constitucional, percebe-se claramente que os regulamentos disciplinares somente podem ser modificados por meio de lei, no seu aspecto técnico, ou seja, por meio de norma elaborada pelo Poder Legislativo. Negar esta interpretação seria o mesmo que negar a existência do Estado democrático de Direito, ou retirar do cidadão o direito ao voto, ou o direito de ir, vir e permanecer.

Esse entendimento fica evidente quando se analisa as modificações que ocorreram na Lei Penal. O Código Penal foi posto em vigência por meio de um Decreto-Lei, que não é uma Lei no sentido técnico da palavra, mas que foi recepcionado pela CF de 1988. Mas, qualquer modificação a este diploma legal somente pode ser feita por meio de Lei Federal aprovada pelo Congresso Nacional e não por decreto, medida provisória, lei delegada ou qualquer outro instrumento previsto no texto constitucional. O mesmo princípio se aplica ao Código Penal Militar, Código de Processo Penal Militar, que foram postos em vigência por meio de Decreto-lei, mas como foram recepcionados somente podem ser modificados por meio de Lei Federal. A esse respeito não existe nenhuma divergência doutrinária e jurisprudencial e portanto como se explica os equívocos que vem ocorrendo na área dos regulamentos disciplinares ?

Pode-se afirmar, com fundamento no art. 5º, LXI, da CF, que o novo regulamento disciplinar da Polícia Militar de Goiás, Decreto Estadual n.º 4.717/96, é inconstitucional e portanto deve ser afastado por meio de decisão do Poder Judiciário mediante provocação de pessoa interessada. O mesmo se aplica às alterações introduzidas no regulamento disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo, após 05 de outubro de 1988. Na verdade, todos os regulamentos disciplinares das polícias militares dos Estados membros da Federação que sofreram modificações por meio de decreto expedido pelo chefe do Executivo após a vigência da CF de 1988 são inconstitucionais.

Nesse sentido, Márcio Luís Chila Freyesleben ao comentar as modificações ocorridas no regulamento disciplinar da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais observa que, "À guisa de especulações, o Decreto n.º 88.545/83, RDM, sofreu alterações de alguns de seus dispositivos, provocadas pelo Decreto n.º 1011, de 22 de dezembro de 1993. Com efeito, após a CF/88 o RDM passou a ter força e natureza de lei ordinária, não sendo admissível que uma lei venha a ser modificada por um decreto. É inconstitucional".3

Com o mesmo entendimento, encontramos Ana Clara Victor da Paixão segundo a qual, "Assim, se há real necessidade e interesse por parte das autoridades administrativas militares em aplicar as penas de detenção e prisão disciplinar impõe-se providenciar que sejam as mesmas instituídas através de lei, dada a indiscutível inconstitucionalidade de todas as medidas restritivas de liberdade pessoal previstas no Decreto n.o 4.717/96".4

Portanto, com fundamento no disposto no art. 5º, inciso LXI, da CF, pode-se afirmar que os novos regulamentos editados por meio de decretos estaduais expedidos pelos chefes do Poder Executivo e os regulamentos que foram alterados por meio de decretos violam flagrantemente o disposto na CF sendo normas inconstitucionais que devem ser retiradas do ordenamento jurídico na forma prevista para esse procedimento.

Notas

1. PAIXÃO, Ana Clara Vitor da. Norma Disciplinar Genérica. Universo Jurídico Goiás, internet, julho/2000. p.2.

2 SAMPAIO, José Nogueira. Fundação da Polícia Militar do Estado de SãoPaulo. 2.a ed. São Paulo, 1981.

3 FREYESLEBEN, Mário Luís Chila. A prisão provisória no CPPM, Belo

Horizonte : Del Rey, 1997, p. 202.

4 PAIXÃO, Ana Clara Vitor da, ob. cit., p. 03.

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