Código de Trânsito Brasileiro e a sua aplicação na Justiça Militar Estadual

Por força da Constituição Federal de 1988, a Justiça Militar dos Estados e a do Distrito Federal não têm competência para processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares pela prática de crimes capitulados em Leis Especiais, por exemplo, Lei de Abuso de Autoridade, Lei de Tortura, Lei de Tráfico de Entorpecentes, entre outras, ou no Código Penal, quando estes não forem decorrentes de atos praticados no exercício da atividade de preservação da ordem pública na forma do art. 144, da Constituição Federal, e não se enquadrarem nas hipóteses enumeradas no art. 9º, do Código Penal Militar.

A ocorrência de um ato ilícito praticado por um militar estadual quando este se encontrava na direção de uma viatura militar pertencente a PM ou CBM enquadra-se nas hipóteses enumeradas pelo art. 9º do CPM, Decreto-lei 1001, de 1969, o que estabelece a competência da Justiça Militar para processar e julgar a matéria.

A respeito do assunto, o Egrégio Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais, quando do julgamento da apelação criminal nº 19.475, proveniente da 1ª Auditoria Judiciária Militar, AJME/MG, que teve como relator o eminente Juiz Cel. PM Jair Cançado Coutinho, decidiu pela competência da Justiça Militar Estadual para processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes de trânsito praticados contra civis ou militares, quando estes se encontrarem na condução de veículos automotores pertencentes à Corporação Militar. Em razão da importância e da excelência do acórdão, este deve ser transcrito na íntegra, então vejamos :

“Policial militar que, em serviço ou atuando em razão da função, dirigindo viatura da Polícia Militar, vier a cometer delito de trânsito contra terceiro, militar ou civil, o crime será militar, conseqüentemente, seu julgamento, da competência da Justiça Militar (art. 9º, inc. II, “c”, do CPM).

- O Código Penal Militar é lei especial, dispondo de proteção da Constituição Federal e, para que haja revogação por outra lei, é necessária a revogação expressa, não se podendo falar em revogação tácita.

- Embora a matéria tenha sido sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça (Súmula nº 06), tem havido conflito de decisões com o Supremo Tribunal Federal, entendendo-se prevalecer as deste, não só por ser a mais alta Corte, mas por ser a questão debatida eminentemente constitucional (art. 125, § 4º, da CF).

Vistos, relatados e discutidos os presentes autos da Apelação nº 2.218, em que figuram como apelante o Ministério Público, apelada decisão do Juízo da 1ª AJME, acusado o Cb PM Carlos Antônio Tavares Pinho e advogada a Dra. Helena Vieira, acordam os Juízes do Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais, por unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso, para manter a decisão de 1º grau que reconheceu a competência da Justiça Militar para apreciar e julgar o feito.

Através de uma sindicância regular, mandada instaurar pelo Comandante do 17º BPM, apurou-se que, no dia 11 de agosto de 2001, por volta das 23:10 horas, na BR 050, Km 074, em Uberlândia, houve um acidente automobilístico, envolvendo a viatura da PMMG 6705, um Pálio Weekend e uma motocicleta Honda Titan, placa GVN 5251, particular.

O Cb PM Carlos Antônio Tavares Pinho, que dirigia a viatura da Polícia Militar, estava de serviço de patrulhamento, juntamente, com o Sd PM Hebert José Vaz.

Estavam socorrendo uma vítima de lesão corporal, levando-a ao hospital, quando a viatura policial abalroou por trás a motocicleta, que era dirigida pelo civil Sandro de Souza Reis, trazendo na garupa a passageira, também civil, Sebastiana Aparecida Bueno.

O condutor da motocicleta sofreu apenas algumas escoriações, sendo que a passageira foi socorrida pelo Corpo de Bombeiros, levada ao Hospital de Pronto Socorro, constando, segundo declaração da vítima, que, devido ao acidente, houve “quebra do fêmur de sua perna direita”.

Não foi feito Auto de Corpo de Delito, mas foi anexado aos autos atestado médico, que constata fratura do fêmur direito de Sebastiana Aparecida Bueno.

O militar responsável mandou consertar, por conta própria, os estragos na viatura da PM.

O Cb PM Carlos Antônio Tavares Pinho foi punido disciplinarmente e os autos encaminhados à Justiça Militar pela presença de indícios de cometimento de crime, em tese.

Distribuídos à 1ª AJME, assim se manifestou, preliminarmente, o douto representante do Ministério Público:

“Estes autos relatam o eventual cometimento do crime de lesões corporais culposas, praticado na direção de veículo automotor que está tipificado na lei nº 9.503/97.

Como a mencionada lei revoga tacitamente o tipo penal do art. 210 do CPM, verifica-se que a Justiça Militar não tem competência para apreciar os fatos.

Nesse sentido, requeiro a remessa dos autos para a Justiça Comum.”

Discordando do Ministério Público, exarou a MMª Juíza Auditora o seguinte despacho:

“O Promotor de Justiça opinou pela incompetência da Justiça Militar Estadual para processar e julgar o crime apurado nestes autos, que resultou em lesão corporal em Sebastiana Aparecida Bueno, que, em tese, foi causado pelo Cb PM Carlos Antonio Tavares Pinho, de serviço, quando na direção da viatura policial.

Trata-se portanto de crime de lesão corporal culposa.

A competência da Justiça Militar estadual vem estabelecida na Constituição Federal no seu artigo 124, norma repetida na Constituição estadual.

O artigo 5º, LIII da Constituição Federal estabelece que ninguém será processado nem sentenciado senão por autoridade competente, erigindo o juiz natural como um dos direitos individuais consagrados. Como juiz natural entende-se ser o órgão judiciário cujo poder de julgar deriva de fontes constitucionais.

A Lei nº 9.503/97, lei ordinária que regulamenta as normas do trânsito, não tem o condão de modificar a competência constitucional estabelecida à Justiça Militar, nos casos em que há tipificação no Código Penal Militar.

O Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul, em recente acórdão (Correição Parcial nº 945/00) datado de 4.10.2000, recusou o arquivamento do inquérito versando sobre acidente de trânsito envolvendo viatura policial dirigida por militar de serviço que resultou em lesões corporais em civil. Jurisprudência Penal Militar julho/dezembro de 2000, pág. 261.

Entendendo ser o juízo da 1ª AJME competente para processar e julgar o feito destes autos, nos exatos termos do que dispõe o artigo 9º, inciso II, letra “c” e artigo 210, ambos do Código Penal Militar, deixo de acatar o de fls. retro.”

Inconformado, aviou o Ministério Público o presente recurso de apelação.

Em suas alegações, alega, em síntese, que:

- não cabendo, no caso, o recurso em sentido estrito, interpôs o presente recurso de apelação;

- com a entrada em vigor da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), os crimes de lesão culposa e homicídio culposo, praticados na direção de veículo automotor, passaram a ser capitulados por ela, afastando a aplicação do diploma legal militar;

- a hipótese dos autos, sendo assim, não está mais tipificada no Código Penal Militar;

- o Código de Trânsito Brasileiro regulou inteiramente a matéria tratada na lei penal militar, havendo, pois, uma revogação tácita do Código Penal Militar;

- a decisão de primeira instância viola a legislação federal e a própria Constituição, contrariando os princípios da legalidade, da anterioridade e da reserva legal, uma vez que os dispositivos incriminadores do diploma militar, eventualmente aplicáveis na hipótese dos autos, foram tacitamente revogados;

- com a revogação tácita dos tipos penais do Código Penal Militar que capitulavam as condutas culposas referidas, que estão agora previstas na Lei nº 9.503/97, o caso concreto só poderá ser analisado e julgado na Justiça Comum.

Requer, enfim, seja dado provimento ao recurso para se reconhecer a incompetência da Justiça Militar e sejam os autos remetidos à Justiça Comum.

A douta defesa concorda com o Ministério Público, se bem que com argumentos diferentes.

Assim, em suas contra-razões, alega, em síntese, que:

- entende, primeiramente, que o recurso próprio não seria o de apelação, pois o despacho da MM ª. Juíza Auditora não se consubstanciou em sentença definitiva, mas em simples decisão interlocutória mista. Ao sentir da defesa, seria o caso de “habeas corpus”;

- quanto ao mérito, a razão processual, constitucional, doutrinária e jurisprudencial não agasalha o entendimento da MM ª. Juíza Auditora;

- a matéria se acha completa e claramente decidida pela Corte competente para dirimir dúvidas de competência, ou seja, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça;

- a matéria já está sumulada pelo STJ, conforme consta da súmula nº 06, do seguinte teor:

“Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito, envolvendo viatura policial militar, salvo se autor e vítima forem policiais militares em situação de atividade";

- há um equívoco nas razões do Ministério Público, pois quem alterou a competência da Justiça Militar Estadual para processar e julgar casos como o em tela, não foi o Código de Trânsito Brasileiro, mas sim o e. STJ, competente para tal;

- a jurisprudência do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul, invocada pela MM ª Juíza Auditora, não tem validade jurídica, pois bate de frente com decisão posterior daquela superior Casa de Justiça;

- para reforçar seu entendimento, hoje praticamente unânime, junta às suas contra-razões 24 (vinte e quatro) ementas de acórdãos do Superior Tribunal de Justiça.

Requer, enfim, ao lado do entendimento do Ministério Público, o envio do IPM à Justiça competente, ou seja, à Justiça Comum.

O douto Procurador de Justiça, em objetivo parecer, pugna pelo não provimento do presente recurso.

É o relatório.

VOTOS

JUIZ CEL PM JAIR CANÇADO COUTINHO, RELATOR

Quanto à natureza do recurso, se apelação, como entende o Ministério Público, se “habeas corpus”, como acha mais apropriado a defesa, considero-a apenas uma discussão acadêmica, que não trará nenhum prejuízo ao deslinde da questão. O importante é o Tribunal, como órgão recursal, decidir sobre o mérito, que tanto em um como em outro recurso, seria o mesmo. Assim, recebo o recurso, como apelação, por próprio e tempestivo.

Vê-se que tanto o Ministério Público de 1ª Instância como a defesa entendem como competente, no caso, a Justiça Comum, mas com motivações e argumentos diferentes.

Para o Ministério Público, com a entrada em vigor da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) os crimes de lesão culposa e homicídio culposo, praticados na direção de veículo automotor, passaram a ser capitulados por ela, afastando a aplicação do diploma penal militar. Haveria, assim, uma revogação tácita desses tipos penais do Código Penal Militar.

Já a defesa entende que há um equívoco do Ministério Público, pois quem alterou a competência da Justiça Militar Estadual para processar e julgar casos como o em tela não foi o Código de Trânsito Brasileiro, mas sim o e. Superior Tribunal de Justiça, competente para tal e que, inclusive, já sumulou a questão.

Quanto às razões do Ministério Público de 1ª Instância, opôs-se a elas o e. Procurador de Justiça, com fundamentação clara e objetiva, com a qual concordamos plenamente e que foi lançada nos seguintes termos:

“O Promotor de Justiça alega que a Lei nº 9.503/97 revogou o art. 210 do CPM. Retirou essa conclusão do art. 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil.

Realmente a lei posterior revoga a anterior quando expressamente declara, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

Porém, o Código Penal Militar é lei especial, dispondo de proteção da Constituição Federal, inclusive no art. 124, § único, e para que haja modificação é necessária a revogação expressa.

A Lei nº 9.503/97 não revogou expressamente o Código Penal Militar e, esse, no art. 9º, I e II, c, assim dispõe:

“Crimes militares em tempo de paz

Art. 9º. Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

I – os crimes militares de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;

II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

..................

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;” (grifo nosso)

Por norma expressa do CPM, os crimes praticados por militar da ativa, quando previstos na lei penal militar, serão considerados crimes militares, mesmo que haja tipificação na lei penal comum.

Apesar da Lei 9.503/97 ser uma lei mais recente que o decreto-lei nº 1.001/69, não revoga as disposições deste. Em caso de acidente automobilístico, que resulte em lesões corporais culposas, se o autor for civil, aplicar-se-á a Lei nº 9.503/97, se o autor for militar, aplicar-se-á o art. 210 do CPM.”

Não há, pois, como falar-se ou admitir-se, nessa matéria, revogação tácita do Código Penal Militar.

Quanto à posição da defesa, que entende estar o assunto solucionado, pois inclusive já foi sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça, apesar da humildade intelectual, que sempre nos norteou, em acatar sempre as decisões dos Tribunais Superiores, tem entendido este Tribunal de Justiça Militar, em recentes e seguidas decisões, que tem havido conflitos de decisões entre o e. Supremo Tribunal Federal e o e. Superior Tribunal de Justiça, e como a matéria é eminentemente constitucional, deve prevalecer a decisão do STF, que entende por competente a Justiça Militar.

Eu mesmo fui relator do Recurso em Sentido Estrito nº 222, em caso análogo, em que o Tribunal, por unanimidade, decidiu reconhecer a competência da Justiça Militar, que foi julgado em 10/10/2000, quando assim me expressei:

“A considerar as razões alinhadas tanto pelo MM. Juiz Auditor, como pelo douto Promotor, para fundamentar suas posições, vê-se que a matéria é complexa e polêmica.

Pela jurisprudência trazida à colação por ambos, verifica-se que há um conflito de decisões entre o excelso Supremo Tribunal Federal e o colendo Superior Tribunal de Justiça, com a diferença que no Superior Tribunal de Justiça a matéria já está sumulada e no Supremo Tribunal Federal as decisões são mais recentes.

Não obstante caber ao Superior Tribunal de Justiça dirimir os conflitos de competência entre Juízos entre si e tribunais diversos (art. 105, inc. I, alínea “d”, da CF), entendo deva prevalecer o entendimento do Supremo, não por ser apenas o mais alto Tribunal do País, mas por ser a questão debatida eminentemente constitucional.

Na verdade, a competência da Justiça Militar Estadual, por ser uma justiça especializada, já vem contida na Constituição Federal. E quando essa mesma Constituição ordenou que à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei, remeteu essa especificação ao art. 9º do Código Penal Militar, que define o crime militar. E nesse particular, a alínea “c” do inciso II do citado art. 9º do CPM não deixa dúvida. Tanto que quando se quis retirar da competência da Justiça Militar os crimes dolosos contra a vida, foi necessário editar-se uma lei própria, a Lei nº 9.299, de 07/08/96. E mesmo assim, há abalizadas opiniões jurídicas que entendem ser essa lei inconstitucional.

Dessa forma, estamos a entender que se o policial militar, em serviço ou atuando em razão da função, dirigindo viatura da Polícia Militar, comete delito de trânsito contra terceiro, seja militar ou civil, o crime será militar, consequentemente, julgado pela Justiça Militar.

Nesse particular, foi por demais lúcido o parecer do douto Procurador de Justiça, que tomo a liberdade de transcrever para ilustrar e enriquecer esse modesto voto:

“A alegação de incompetência fundamentou-se na Súmula nº 06 do STJ.

É claro que a jurisprudência deve ser usada para o suprimento dos casos omissos. O próprio CPPM assim o prevê no art. 3º, “b”. Porém, não deve ser utilizada contra legem.

A Constituição Federal de 1988 deu à lei poderes para dispor sobre a competência da Justiça Militar.

“Art. 124. À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência, da Justiça Militar.” (grifo nosso)

A matéria é de tamanha importância que, no artigo posterior ao citado, repete-se a regra (art. 124, § 4º).

Ora, o Decreto-Lei nº 1.001, de 21/10/1969 e o Decreto-Lei nº 1.002, da mesma data, foram recepcionados pela Constituição, sendo, desta forma, a lei a que se refere o art. 124 da CF/88.

A definição da infração como crime militar está no art. 9º do CPM, e para aplicação ao caso concreto temos a regra do inciso II, alínea “c”:

“Art. 9º. Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

............................

II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

..........................

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, reformado, ou civil.”

Quando o legislador quiser excluir alguma hipótese deste rol do art. 9º, ter-se-á que fazê-la por meio de lei. Aliás, assim o procedeu, quando se entendeu que o crime doloso contra a vida, praticado por militar (nos termos do art. 9º) contra civil, seria de competência da Justiça Comum – Lei nº 9.299, de 07/08/1996.

Assim, ao remeter os presentes autos à Justiça Comum estaríamos desrespeitando a própria Constituição Federal.

O Supremo Tribunal Federal, o “guardião da Constituição, já se manifestou no sentido de que é crime de competência da Justiça Militar quando um militar, na direção de uma viatura policial, envolvê-se em acidente automobilístico, produzindo lesões corporais culposas em terceira (STF – HC 70.359 – DF – 2ª T. – Rel. Min. Carlos Velloso – DJU 27/08/1993; e STF – RE 176.79-6 RS – 1ª T. – Rel. Min. Sydney Sanches – DJU 23/02/96).”

Nesses termos, dou provimento ao recurso para, no presente caso, reconhecer a competência da Justiça Militar.”

Da mesma forma, caminhou o Tribunal no Recurso em Sentido Estrito nº 221, cujo relator foi o e. Juiz Cel PM Paulo Duarte Pereira, julgado em 26/09/2000 e cujo voto foi lançado nos seguintes termos:

“Consta do pleito a inaplicabilidade da Súmula nº 06 do egrégio Superior Tribunal de Justiça, que remete para a justiça comum os delitos de acidentes de trânsito, quando provocados por policiais militares ao volante de veículos militares e, quando as vítimas são civis. Em seu inteiro teor a Súmula nº 06 do e. Superior Tribunal de Justiça:

‘Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito, envolvendo viatura de Polícia Militar, salvo se autor e vítima forem policiais militares em situação de atividade’.

Contrapõem-se a essa Súmula incontáveis julgados nos tribunais pátrios, bem como decisões do e. Supremo Tribunal Federal, transcritas neste recurso, pelo ilustrado recorrente, Promotor Denilson Feitoza Pacheco.

Consoante as transcreveu, às fls. 160 e 161, a elas me reporto neste voto, pois alicerçarão minha própria decisão, “in verbis”:

‘CONFLITO POSITIVO DE JURISDIÇÃO: JUSTIÇA MILITAR E JUSTIÇA COMUM (ESTADUAL) – CRIME MILITAR – ART. 125, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – ARTS. 9º, INC. II, “C”, E 210 DO CÓDIGO PENAL MILITAR – 1. “Havendo as denúncias, formuladas perante a Justiça Militar e a comum (Estadual) esclarecido que, no curso da perseguição a suspeitos, o soldado da Polícia Militar, pilotando viatura militar, culposamente abalroou outro veículo particular, causando lesões corporais nos companheiros de farda e nos passageiros do veículo civil, descreveram crime militar (art. 9º, II, “c”, c/c art. 210 do C. Penal Militar), de competência da Justiça Militar, nos termos do art. 125, § 4º, da Constituição Federal, e não da Justiça Comum estadual. 2. R. E. conhecido e provido, para se declarar a competência da Justiça Militar (Juiz-Auditor da Auditoria Militar de Santa Maria – RGS), ficando, em conseqüência trancado o processo em curso perante a Justiça comum”(Juízo de Direito (estadual) da 1ª Vara da Comarca de São Borja – RS). (STF – RE 176.79-6-RS-1ª T. – Rel. Min. Sydney Sanches – DJU 23.02.1996).

PROCESSUAL PENAL – PENAL – CRIME MILITAR – LESÕES CORPORAIS CULPOSAS – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR – CÓDIGO PENAL MILITAR, ART. 9º, II, C – Militar a serviço de sua Corporação quando ocorreu o acidente com a viatura oficial que dirigia, produzindo lesões corporais culposas em terceiro, não militar. Competência da Justiça Militar. (STF – HC 70.359 – DF – 2ª T. – Rel. Min. Carlos Velloso – DJU 27.08.1993)’.

Fundamenta, ainda, o ilustre recorrente seu posicionamento, na Constituição Federal, artigo 125, § 4º, que define a competência da Justiça Militar estadual, que não veda a atribuição deste foro especial para processar e julgar policiais militares que venham a cometer delitos de trânsito. Sendo o Supremo Tribunal Federal o guardião da Carta Magna, suas decisões se sobrepõem às de outros tribunais. Não operando o efeito vinculante, não vejo obrigatoriedade em se aplicar, por força daquele vínculo, a Súmula nº 06, nos julgados desta Justiça Militar estadual.

Prevalecem as decisões da Corte Suprema.

Em referência ao instituto da decadência do direito de representar e, com consequência, à extinção da punibilidade, são matérias a serem apreciadas no juízo de primeiro grau.

Declaro, portanto, dando provimento ao recurso em sentido estrito, competente a Justiça Militar estadual para conhecer, processar e julgar os crimes praticados por policiais militares, quando na direção das viaturas da Polícia Militar, nos termos do artigo 9º do Código Penal Militar”

Por judicioso e objetivo, permito-me ainda citar o voto do e. Juiz Dr. José Joaquim Benfica no mesmo acórdão:

“Embora a argumentação muito boa e cuidadosa do eminente Juiz Dr. Waldyr Soares, acredito que a jurisprudência citada, que é uma jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, firmou súmula, logo depois da Constituição Federal (ano de 89, 90, por essa época), quando os tribunais ainda estavam sob a influência do posicionamento do Supremo Tribunal Federal, anterior à Constituição, em conflitos decorrentes da colocação da Polícia Militar no serviço ostensivo. Sabemos que o decreto-lei 667, de 1969, deu atribuição privativa à Polícia Militar de exercer o policiamento ostensivo. A partir daí, a Justiça Militar passou a julgar os casos de delitos cometidos no policiamento. Foi muito questionado isso. Chegou-se ao ponto de o Tribunal Federal de Recurso, na época, considerar que o policiamento ostensivo é de natureza civil. Daí, então, chegou-se até a sumular a competência da justiça comum, nesses casos. Nesse sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, mesmo logo após a Constituição de 1988.

Com as novas atribuições dadas, não pelo decreto-lei, mas pela Constituição Federal, à Polícia Militar, embora essa súmula seja logo depois da Constituição, parece que o entendimento se tem modificado. E o Supremo Tribunal Federal, como mostrou o

Ministério Público, tem decisão bastante recente, no sentido da competência da Justiça Militar em acidente de trânsito, envolvendo militar e civil como vítimas.

Nesses termos e segundo o parecer do ilustre Procurador de Justiça, voto com o eminente Juiz relator, dando provimento ao presente recurso.”

Também no mesmo sentido, foi o voto do e. Juiz Dr. Décio de Carvalho Mitre, que foi relator do Recurso em Sentido Estrito nº 223, julgado em 26/09/2000, e que assim decidiu:

“A matéria não é simples, como demonstram as bem elaboradas peças, tanto da sentença, como do recurso e do parecer do Sr. Procurador, todas fazendo justiça à inteligência e cultura de seus signatários.

O Sr. Juiz Auditor justifica sua decisão com nada menos que 11 (onze) Ementas, quase todas originárias de processos de Conflito de Competência, onde a decisão aponta o caminho da Justiça Comum a ser palmilhado por processos envolvendo militares na condução de viaturas da Polícia Militar, ressalvando a hipótese em que acusados e vítimas sejam militares. Todos os acórdãos, na esteira da Súmula nº 06 do Superior Tribunal de Justiça:

‘Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito, envolvendo viatura de Polícia Militar, salvo se o autor e vítima forem policiais militares em situação de atividade’.

Por seu turno, o Sr. Promotor traz à colação duas decisões do Supremo Tribunal Federal. Em sua ótica, a matéria é constitucional, pois a competência da Justiça Militar Estadual encontra-se estabelecida no art. 125, § 4º, da Constituição Federal; a última palavra sobre a Justiça Militar ser competente ou não no que se refere ao caso da Súmula nº 06 do Superior Tribunal de Justiça, será dada pelo Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição.

Em arrimo à sua tese, cita ementa que vai a fls. 56, sendo Relator o Min. Carlos Velloso:

‘Militar a serviço de sua Corporação quando ocorreu o acidente com a viatura oficial que dirigia, produzindo lesões corporais culposas em terceiro, não militar. Competência da Justiça Militar’.

O Sr. procurador, Dr. Epaminondas Fulgêncio Neto, atenta para o fato de que a definição da infração como crime militar está no art. 9º do CPM e, para a aplicação ao caso concreto, temos a regra do inciso II, alínea “c”:

‘Art. 9º - Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

II – Os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou civil’.

Em seu entendimento, quando o legislador quiser excluir alguma hipótese deste rol do art. 9º, ter-se-á que fazê-la por meio de lei. Aliás, assim o procedeu, quando se entendeu que o crime doloso contra a vida, praticado por militar (nos termos do art. 9º) contra civil, seria de competência da Justiça Comum – Lei 9.299, de 07/08/96.

Na verdade, o assunto é tormentoso, como não é simples a definição e a compreensão de crime militar, que tem desafiado juristas.

Contudo, oriento-me por entendimentos já por diversas vezes externados no Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais.

Vai uma diferença imensa entre o militar que dirige seu próprio veículo, ou um veículo particular, e causa lesões em eventuais transeuntes e entre o militar que se encontra em atividade, diga-se trabalhando, dirigindo uma viatura policial da Corporação.

Reporto-me de algumas decisões do próprio Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais:

‘Apelação nº 2.037, Rel. Juiz Dr. José Joaquim Benfica.

Homicídio Culposo – Acidente de Viatura.

Responde, no mínimo, por crime culposo, o condutor de viatura que a dirige em velocidade não compatível com as condições da pista e climáticas’.

‘Recurso em Sentido Estrito nº 143, Rel. Juiz Dr. Juarez Cabral.

Crime Militar. Condução de Viatura Militar. Caracterização (art. 9º, II, letra “c”, do Código Penal Militar).

Decisão – Acorda o Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais, sem discrepância na votação, em dar provimento ao recurso e reconhecer a competência desta Justiça Especializada para apreciar e decidir o feito’.

Ramagem Badaró já lecionou, fazendo remissão ao CPM, que alguns pressupostos para se aquilatar o crime militar existem e, dentre eles, ‘os crimes praticados em serviço ou em formatura pelo militar ou assemelhado, mesmo fora do lugar subordinado à administração militar’.

No caso concreto, o militar se encontrava em serviço e dirigindo uma viatura pertencente à Corporação.

Por derradeiro e apenas para justificar meu posicionamento, é de se dizer que, por reiteradas vezes, encontramos no Ementário da Justiça Militar decisões nunca conflitantes para se julgar processos que envolvam viaturas em acidentes de trânsito.

Pelo exposto, pelas razões apontadas e com vênia para os termos da erudita e inteligente decisão de fls. 53 e seguintes, dou provimento ao recurso formulado pelo Sr. Promotor, declarando competente para apreciar o feito a Justiça Militar.”

Como se vê, há uma unanimidade do Tribunal a respeito do assunto, não em desrespeito à Súmula, mas em respeito às decisões conflitantes do STF.

Nesses termos, nego provimento ao recurso para manter a decisão da MMa. Juíza Auditora, reconhecendo a competência da Justiça Militar”.

Neste sentido, percebe-se com base na decisão proferida pelo Egrégio Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais, a qual foi unânime, que não existe nenhuma dúvida que a Justiça Militar Estadual de 1ª instância possui competência para processar e julgar na forma das disposições do art. 125, § 4º, da Constituição Federal, os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei, quando estes forem praticados na condução de veículos automotores pertencentes à respectiva Corporação Militar.

A 2ª Auditoria Judiciária Militar do Estado de Minas Gerias vem acolhendo o entendimento do Egrégio Tribunal de Justiça Militar do Estado e tem conhecido das ações penais militares decorrentes de acidentes de trânsito que tenham resultado em lesão corporal de natureza culposa ou mesmo homicídio culposo.

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1. O artigo foi originariamente publicado na Revistas Juristas.com, em 19 de setembro de 2006;

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