Prova Testemunhal no processo administrativo militar

1. Introdução

A Constituição Federal no art. 5º, inciso LV, disciplina que, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". Conforme vem sendo defendido, com a promulgação do Texto Constitucional de 1988 pelo Congresso Nacional Constituinte, o direito administrativo militar, seja ele relacionado com os integrantes das Forças Armadas ou com o integrantes das Forças Auxiliares, passou por profundas modificações, mas que ainda não foram incorporadas pelo direito castrense.

As forças militares são essenciais para a preservação do Estado democrático do direito, e possuem um conjunto de normas próprias, as quais são representadas no aspecto interno pelos denominados regulamentos disciplinares que buscam preservar os dois princípios essenciais da ordem militar, a hierarquia e a disciplina.

Ao deixar o mundo civil, o futuro integrante das Forças Militares sabe que estará sujeito a um conjunto de normas diferenciadas das existentes na sociedade civil, mas isso em nenhum momento significa que a condição de cidadão terá sido abandonada, pois a Constituição Federal a tutela, mesmo que o administrado queira abrir mão dessa qualidade. A existência do Estado democrático de direito pressupõe em primeiro lugar o respeito à Constituição Federal, que é a norma fundamental de qualquer Estado que segue a tradição da família romano-germânica, ou seja, um direito que tem como fonte primária e Lei.

O militar, federal ou estadual, que venha a praticar faltas disciplinares chamadas de transgressões disciplinares deve ser punido, uma vez que a existência das garantias constitucionais não significa a defesa da impunidade, ao contrário, tem por objetivo legitimar o poder por meio de uma aplicação justa da Lei. O abandono da auto-tutela, ou do uso da chibata, tem por objetivo fortalecer o Estado criado por meio de uma sociedade livre e democrática. A teoria do processo por força do vigente texto constitucional informa tanto o processo penal ou civil, como o processo administrativo que foi constitucionalizado em respeito ao disciplinado no art. 5.o, inciso LV.

2. Ônus da Prova

Em decorrência do devido processo legal, o ônus da prova no processo administrativo pertence à Administração Pública, e não ao acusado, devendo esta comprovar que o militar feriu o preceito disciplinado nos regulamento militares. Deve-se observar que este princípio ainda não é inteiramente aplicado na área do direito administrativo militar, uma vez que alguns administradores por falta de conhecimento ou respeito a Constituição Federal, e mesmo a Convenção Americana de Direitos Humanos, art.5.o, parágrafo 2.o da CF, invertem o princípio quase que obrigando o militar a comprovar a sua inocência.

O Estado que é o titular do jus puniendi por força do contrato social que afastou a auto-tutela, assumiu para si o direito de punir. Esse direito também existe na esfera administrativa militar que possui estreita relação com o direito penal. Mas, a existência dessa prerrogativa por parte do Estado impõe uma contraprestação, qual seja, demonstrar que o acusado efetivamente praticou o fato que lhe é imputado em atendimento ao devido processo penal, sob pena de nulidade do ato praticado, inclusive com conseqüências no campa civil, decorrentes de indenização por danos morais e materiais.

É importante se observar que ao contrário do que ocorre no direito penal na esfera administrativa não existe a prevalência do princípio da imparcialidade para que se possa alcançar a efetiva aplicação da Justiça. Essa afirmação tem como o fundamento o fato da mesma autoridade administrativa exercer a função de julgamento e colheita das provas durante a instrução probatória, o que impede muitas vezes à aplicação do princípio da inocência.

Mas, alguns diplomas administrativos invertem a obrigação do Estado de demonstrar a culpabilidade do acusado, transferindo esta tarefa ao próprio funcionário, civil ou militar, que deverá demonstrar a sua inocência, o que é incompatível com as modificações introduzidas pela Constituição Federal de 1.988, e fere os princípios vigentes no Estado democrático de direito, uma vez que a Administração Pública, civil ou militar, encontra-se sujeita aos princípios de legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência disciplinados no art. 37, "caput" da C.F.

3. A testemunha no processo administrativo disciplinar militar

A testemunha no processo administrativo militar, assim como ocorre no processo penal e civil, presta depoimento sob o compromisso de dizer a verdade, sob pena de praticar o ilícito de falso testemunho disciplinado no Código Penal. Além disso, a testemunha deve comparecer quando intimada sob pena de praticar o crime de desobediência disciplinado no art. 330 do Código Penal, uma vez que esta encontra-se a disposição da Justiça ou da Administração Pública.

No Estado de São Paulo, apesar dos protestos apresentados pelos advogados junto as Seções de Justiça e Disciplina da Polícia Militar, a I-16 PM determina que o acusado deve trazer as testemunhas de defesa, que foram arroladas na defesa prévia, sob pena de perder a possibilidade de produção desta espécie de prova. As testemunhas de acusação, ao contrário das testemunhas de defesa, serão intimadas sujeitas a todas penalidades disciplinadas em Lei, sendo inclusive caso seja necessário conduzidas perante a Organização Policial Militar (OPM) após deferimento do juiz Corregedor, por meio de condução coercitiva.

Os julgadores da administração pública policial militar devem pautar sua atividade pelo princípio da imparcialidade, uma vez que prestam esse juramento antes de analisarem qualquer causa, mesmo não sendo bacharéis em direito, e buscarem a efetiva aplicação da Justiça, que segundo o professor Aurélio Buarque de Holanda é a faculdade de julgar segundo o direito, dando a cada um o que é seu. Mas, no exercício dessa atividade, deve-se observar que qualquer testemunha antes de ser testemunha de acusação ou de defesa é testemunha do juízo, ou no caso sob análise, testemunha da administração pública militar.

Apesar da acusação recair sob a mesma pessoa no processo administrativo, que seria no processo judicial como se o juiz fosse ao mesmo tempo julgador e promotor, não podemos esquecer que neste vige a teoria do processo, segunda a qual a acusação e a defesa encontram-se em posição de igualdade, não podendo existir um cerceamento a ampla defesa e o contraditório, previstos no texto constitucional.

Poderiam alguns que militam na área do direito administrativo militar afirmar que não existe nenhuma contradição nas atividades desenvolvidas pela autoridade militar julgadora, uma vez que esta delega seus poderes a um oficial para que este emita um parecer, o qual poderá ser acolhido ou não. Mas, não podemos nos esquecer que o parecer não deixa de ser um julgamento, e que a colheita das provas tem sido realizada em desrespeito ao princípio da igualdade entre as partes.

A determinação existente na I-16 fere expressamente o direito de igualdade entre as partes trazendo prejuízos para o acusado. Como é do conhecimento dos operadores do direito, a maioria da pessoas não gosta de ser testemunha, por vários motivos, entre eles o medo de sofrerem alguma represália, sendo que somente comparecem em juízo quando devidamente intimadas, e em muitas casos costumam faltar quando da primeira intimação. Além disso, existem funcionários públicos que somente podem prestar depoimento quando devidamente requisitados.

A imposição da Administração Pública Estadual com base em uma norma administrativa é inconstitucional e deve ser afastada, sob pena de se estar cerceado o direito a ampla defesa e ao contraditório, que foi assegurado pela Constituição Federal a todos os acusados em processo administrativo, seja este civil ou militar.

3.Considerações finais

As normas jurídicas existem para serem cumpridas, e quem viola a lei ou preceitos de uma corporação ou mesmo de uma empresa deve ser punido, para se evitar a impunidade e a crença de que o Estado democrático de direito permite a prevalência do desrespeito da Lei. Com o abandono da auto-tutela para alguém ser punido é necessário a existência de um processo, o chamado devido processo legal, sem o qual ninguém perderá os seus bens ou a sua liberdade, seja esta pessoa um civil ou um militar, federal ou estadual.

A punição segundo os regulamentos militares existe para que o punido possa aprender a respeito do ato praticado, e não mais voltar as transgredir os preceitos da vida castrense. Mas, a busca da punição deve seguir, ou melhor, estar pautada pelo respeito ao princípios consagrados na Constituição Federal. A imposição da apresentação da testemunha arrolada pela defesa no momento oportuno por parte do acusado viola o princípio da igualdade entre as partes e o devido processo legal, ocasionando um ônus que prejudica o funcionário público acusado de ter violado um preceito constante do Regulamento Disciplinar Militar.

A administração pública possui o jus puniendi para punir seus integrantes, mas esse direito impõe como obrigação o ônus da prova, o qual não pertence ao acusado. Inexistindo elementos que possa comprovar a autoria e materialidade da transgressão disciplinar ou da contravenção militar, conforme Regulamento da Marinha do Brasil, deve-se absolver o acusado com fundamento no princípio da inocência.

Portanto, a imposição da obrigação do acusado ter de apresentar as testemunhas quando este previamente no momento oportuno requereu intimação destas pela Administração Pública, o não atendimento do pedido configura violação aos princípios constitucionais devendo a conduta ser analisada pelo Poder Judiciário, em atendimento ao disciplinado no art. 5 o, inciso XXXV da Constituição Federal, podendo este ato arbitrário ser reparado por meio de Mando de Segurança perante a autoridade judiciária, por meio das regras de competência estabelecidas em cada Estado na forma da Lei de Organização Judiciária.

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Nota:

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