Aplicação da Lei Federal nº 8.072/90 na Justiça Militar

1. Introdução

A violência no decorrer dos anos vem assumindo índices assustadores, que levam ao endurecimento do discurso de lei e ordem, que surge nos momentos de crises. As pessoas estão inseguras, com medo, procurando um caminho que possa levar a dias melhores, onde cada um respeite os direitos e garantias fundamentais estabelecidos na Constituição Federal.

A Lei Federal n º 8.072/90 surgiu como uma esperança no combate a determinados crimes que devido a sua gravidade e conseqüências passaram a ser considerados hediondos, merecendo um tratamento diferenciado, como uma forma de reprimir os atos de barbárie que são praticados contra as pessoas que vivem sob a égide da lei. No decorrer dos anos, ficou mais do que demonstrado que a denominada Lei dos Crimes Hediondos de forma isolada não foi capaz de conter ou impedir o aumento da violência.

A falta de uma maior integração entre as leis, ou ainda de uma melhor redação das normas destinadas a seara penal, tem produzido lacunas que muitas vezes não são preenchidas, o que traz dificuldades para os aplicadores da lei, juízes e Tribunais.

O sistema carcerário brasileiro tem se mostrado precário e incapaz de dar atendimento às disposições estabelecidas nas leis processuais, como ocorre com a Lei Federal n º 8.072/90 que determina o cumprimento da pena em regime integralmente fechado.

Os fatos ocorridos no Rio de Janeiro no dia 11 de setembro de 2002, evidenciaram para toda a coletividade que o sistema penitenciário brasileiro é deficiente. Segundo a Revista Veja, em matéria publicada no dia 18 de setembro de 2002, “O que existe é um ambiente de promiscuidade e corrupção que contaminou a máquina administrativa e as forças policiais. A máquina encarregada de prender e manter presos os grandes criminosos está, pelo menos em parte, contaminada pelo dinheiro que esses bandidos distribuem para comprar facilidades”, fls. 90.

A falta de conhecimento da Justiça Militar, que possui previsão Constitucional e vem prestando um serviço de qualidade no decorrer dos anos, impede que a Lei Federal n º 8.072/90 seja aplicada a esta Justiça Especializada, em atendimento ao princípio da legalidade que não admite em nenhuma hipótese a aplicação do princípio da analogia para prejudicar o acusado.

O art. 1 º da Lei 8.072/90 estabelece quais são os crimes considerados hediondos. Segundo o mencionado artigo, “São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei n º .2848 de 7 de dezembro de 1940, Código Penal, consumados ou tentados : I- homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, 2 º, I, II, III, IV e V); II – latrocínio (art. 157, 3 º, in fine); III – extorsão qualificada pela morte (art. 158, 2 º); IV – extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e 1 º, 2 º, 3 º ); V- estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); VI – atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); VII-epidemia com resultado morte (art. 267, 1 º); VII-A – vetado; VII-B – falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput, e 1 º., 1 º A, 1 º B, com a redação dada pela Lei n º 9.677, de 2-7-1998). Parágrafo único. Considera-se também hediondo o crime de genocídio previsto nos arts. 1 º, 2 º, e 3 º da Lei n º 2.889, de 1 º de outubro de 1956, tentado ou consumado”.

No ano de 1990, a Justiça Militar (Federal ou Estadual) estava previamente prevista na Constituição Federal de 1988, mas mesmo assim o legislador federal não fez qualquer menção aos crimes capitulados no Código Penal Militar, como se este estatuto não estabelecesse crimes que possuem repercussão junto a sociedade civil organizada.

2. O Código Penal Militar

A Constituição Federal de 1988 colocou fim a uma discussão doutrinária que por muito tempo suscitou debates apaixonados sobre a aplicação ou não do Código Penal Militar aos integrantes das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares.

Segundo a norma constitucional, considera-se servidor público militar federal os militares das Forças Armadas, praças ou oficiais, e servidor público estadual os militares das Forças Auxiliares, praças ou oficiais, que ficam sujeitos a regulamentos administrativos e também as disposições do Código Penal Militar, Código de Processo Penal Militar e Leis Especiais Militares.

O Código Penal Militar prevê os crimes militares em tempo de paz e os crimes militares em tempo de guerra. Além disso, segundo a doutrina, na legislação penal militar, os crimes podem ser classificados em crimes militares próprios, e crimes militares impróprios. Os crimes militares próprios são aqueles relacionados com a as atividades institucionais desenvolvidas pelos militares, como o abandono de posto, delito do sono, entre outros. Os crimes militares impróprios são aqueles que também possuem a sua previsão no Código Penal Comum, e que podem ser praticados por qualquer pessoa sem estarem relacionados com atividades propriamente militares, como o furto, o roubo, o tráfico de entorpecentes, o homicídio, entre outros.

Se um militar federal ou um civil praticar um crime de homicídio, doloso ou culposo, contra um militar das Forças Armadas em local sujeito a administração pública militar será julgado perante a Justiça Militar da União, mas se o crime em tese for um homicídio qualificado na forma do art. 205, parágrafos 1 º e 2 º, este não ficará em nenhum momento sujeito as regras estabelecidas na Lei Federal n º 8.072/90, que tem por objetivo endurecer o tratamento que deve ser dispensado aos infratores desta espécie de ilícito.

As Justiças Militar, Federal ou Estadual, não prevêem o Júri como o órgão responsável pelo julgamento dos crimes dolosos contra a vida. No caso dos crimes dolosos contra a vida, o órgão responsável pelo julgamento destes ilícitos é o Conselho de Justiça, Especial ou Permanente. Se o infrator for um graduado, praça, a competência será do Conselho Permanente de Justiça. Se o infrator possuir posto ou patente, oficial, será julgado pelo Conselho Especial de Justiça.

Por falta de uma maior integração do sistema, os infratores dos crimes militares próprios ou impróprios não ficam sujeitos as normas estabelecidas na Lei Federal 8.072/90.

3. O Código de Processo Penal Militar

O Código de Processo Penal Militar estabelece as normas processuais que devem ser observadas no julgamento dos crimes militares próprios ou impróprios. O Código de Processo Penal somente se aplica ao CPPM no caso da existência de uma lacuna que deve ser suprida na busca de uma efetiva prestação jurisdicional, art. 3 º, alínea a do Decreto-lei n º 1.002/1969.

A liberdade provisória, o livramento condicional, e as demais disposições legais atinentes aos crimes enumerados no art. 1 º da Lei 8.072/90 no caso dos ilícitos militares não sofrem qualquer limitação, e devem seguir o disposto na Lei Militar por falta de disposição expressa em contrário.

A lei processual penal militar possui disposições próprias que são diferentes da lei processual penal comum, como por exemplo o julgamento dos acusados por meio de um órgão colegiado composto de quatro juízes leigos e um juiz togado denominado de juiz-auditor, que tem acesso ao cargo por meio de um concurso de provas e títulos.

Os julgamentos na Justiça Militar também são marcados pela obrigatoriedade dos debates, que ocorrem ao final da instrução probatória na sessão de julgamento, onde o Ministério Público poderá sustentar suas alegações pelo prazo de três horas, sendo igual prazo reservado a Defesa. Caso exista a necessidade de réplica, o Ministério Público poderá fazê-lo por meia hora, sendo igual prazo destinado a Defesa para a sua tréplica.

Na busca de um reforma no Código de Processo Penal Militar este prazo deveria ser limitado a uma hora, tornando-se obrigatória o oferecimento de alegações finais escritas sob pena de preclusão do ato e a nomeação de um outro profissional pelo juiz-auditor para o cumprimento desta fase processual.

As diferenças existentes na lei processual militar não impedem a efetiva aplicação das disposições penais que deverão estar uniformizadas no caso dos crimes impróprios em atendimento ao princípio da igualdade que devem reger as relações em atendimento as disposições constitucionais.

4. Conclusão

A Justiça Militar é uma Justiça Especializada que existe no país desde 1808. O primeiro Tribunal criado por D. João VI quando transferiu a Corte para o Brasil foi o Conselho Militar, que se tornou o órgão responsável pela aplicação da lei em nome do Rei.

Alguns legisladores e operadores do direito não conhecem a Justiça Militar e o seu funcionamento. Segundo os críticos a Justiça Militar pertence às Forças Armadas ou às Polícias Militares.

A falta de informações decorrente de uma melhor leitura dos textos legais, leva a determinadas afirmações que não correspondente à realidade, como por exemplo, que a Justiça Militar é uma Justiça Corporativa e que ali os acusados são absolvidos por seus pares.

Segundo a Constituição Federal, a Justiça Militar é a responsável pelo julgamento dos integrantes das Forças Armadas, Justiça Militar da União, e o julgamento dos policiais e bombeiros militares, Justiça Militar Estadual.

Na busca de se modificar a legislação em nome muitas vezes do discurso de lei e ordem, o legislador se esquece que existe uma Justiça Especializada responsável pelo julgamento dos ilícitos militares.

A legislação militar também deve ser aperfeiçoada assim como vem ocorrendo com a legislação penal, que pode ser considerada como uma das melhores, que foi aperfeiçoada em 1940 com o auxílio do Ministro Francisco Campos.

A Lei 8.072/1990 que em muitos aspectos vem sendo considerada inconstitucional pelos Tribunais Estaduais ou Superiores não poderá ser aplicada aos jurisdicionados da Justiça Militar por falta de previsão legal.

O militar que praticar um dos crimes capitulados nos arts. 232 a 237 do Código Penal Militar não poderá sofrer qualquer limitação com base na lei 8.072/1990 por falta de previsão legal, uma vez que o legislador se esqueceu que existe uma Justiça Militar.

O princípio da legalidade previsto na Constituição Federal não permite que nenhuma norma penal seja aplicada por analogia. Segundo a doutrina, Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, a analogia somente se admite a favor do réu, e não para prejudicá-lo.

Portanto, nas próximas modificações a serem realizadas na lei penal comum, o direito penal militar deverá ser incluído para se evitar uma desigualdade nos institutos, que devem levar em consideração as disposições constitucionais. Afinal, o sistema denominado de civil law não permite que nenhuma lei infraconstitucional esteja em desacordo com as disposições constitucionais.

Disponível na internet: www.ibccrim.org.br, 10.11.2003