O devido processo legal e o Estado democrático de Direito

A vida em sociedade exige a existência de leis que possam disciplinar e estabelecer os comportamentos permitidos ou proibidos, na busca da harmonia social, que também se reflete na tranqüilidade pública, que é essencial para a convivência dos diversos grupos sociais que formam a sociedade.

Nos países em que se abandonou o exercício do auto-tutela, ou seja, o exercício do olho por olho dente por dente, proveniente do Código de Hamurab, nenhuma pessoa, brasileira ou estrangeira residente no país, poderá ser condenada ou mesmo julgada a não ser por uma autoridade judiciária competente, prerrogativa esta que não é assegurada a nenhum outro Poder.

Na obra o Espírito das Leis, Montesquieu procurou demonstrar que uma sociedade somente poderá evoluir desde que observe determinados princípios, postulados, que são requisitos para a existência de um governo livre e soberano. A primeira regra ou principio é a sociedade se encontrar assentada em leis. O segundo dos princípios é a existência de uma divisão das funções do Poder Público. Em razão disto, o Poder foi dividido em três funções, função executiva, função legislativa e função judicial.

Neste sentido, na busca de uma efetiva vida em sociedade é preciso que cada função do Poder respeite o limite das outras funções, sob pena de uma quebra do equilíbrio das funções públicas que é essencial para a existência do denominado Estado Democrático de Direito.

Por força destas premissas, que no decorrer dos anos têm se mostrado verdadeiras, se uma pessoa comete um ilícito, civil, penal, administrativo, tributário, ou qualquer outro, somente poderá ser processada e julgada pelo Poder Judiciário, onde deverão ser assegurados a ampla defesa e o contraditório com todos os recursos a eles inerentes.

A observância dos princípios processuais não significa a busca da impunidade e nem mesmo um incentivo à criminalidade. Se o Estado estiver devidamente aparelhado este conseguirá por meio de procedimentos lícitos produzir as provas necessárias que possam demonstrar a culpabilidade de um acusado, ainda que o crime praticado pelo infrator possa causar repulsa aos seus semelhantes em razão de preceitos éticos ou morais.

A partir do momento em que existe a quebra de todos as garantias estabelecidas na Constituição Federal pode-se afirmar que o Estado de Direito também está sendo fragilizado, uma vez a que as Instituições perdem o seu sentido e a promoção da Justiça é transferida para terceiras pessoas, o que fere o princípio da imparcialidade e do devido processo legal.

A liberdade de informação é um direito do cidadão, mas esta liberdade não pode e não deve ultrapassar os limites que também foram estabelecidos no texto constitucional, como o respeito a dignidade da pessoa humana, a integridade física, a preservação da vida, a preservação da imagem, entre outros direitos fundamentais que se encontram enumerados no artigo 5º, da Constituição Federal, e também nos instrumentos internacionais que foram subscritos pelo Brasil, como a Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto de São José da Costa Rica.

A busca ou mesmo a transmissão de uma informação não pode e não deve ser confundida com uma execração pública, ou mesmo como a realização de julgamentos antecipados, com a imposição de penas que não são provenientes do Poder Judiciário, órgão competente para processar e julgar uma pessoa na República Federativa do Brasil.

A Escola de Base que ficava na cidade de São Paulo ainda encontra-se bem viva nas recordações dos inventários dos telejornais. Segundo os órgãos de informação, algumas pessoas estariam praticando atos de violência sexual contra crianças e em razão disto estas pessoas tiveram os seus bens depredados, a sua liberdade cerceada, e ainda sofreram ataques advindos de todos os lados. Posteriormente, descobriu-se que estas pessoas eram inocentes, mas a inocência não foi divulgada da mesma maneira como se deram as acusações, que na verdade eram infundadas.

Todos crimes devem ser reprimidos pelo Estado na busca da manutenção e preservação da ordem pública e da paz social, mais isto não significa que o Estado possa fazer justiça com as próprias mãos. Os acusados ainda que tenham praticado crimes considerados hediondos devem ser processados e julgados em conformidade com a Lei, que é o instrumento escolhido pela sociedade para a resolução dos conflitos sociais.

No decorrer dos anos, o Brasil tem conhecido casos que despertam o inconformismo da população, mas se percebe que os órgãos de formação de opinião nem sempre tratam os fatos com a imparcialidade necessária, o que significa transmitir a informação sem a formação de juízos de valor, que possam interferir no ânimo das pessoas quanto aos fatos que lhe são mostrados.

A prática de crimes como o homicídio, o estupro, o latrocínio, entre outros, sempre trazem uma certa revolta por parte da população que vive sob o império da Lei. Mas, a população muitas vezes desconhece que os crimes de corrupção, concussão, estelionato, entre outros, muitas vezes são piores do que os denominados crimes hediondos. O desvio de recursos públicos para os cofres particulares muitas vezes leva a morte de várias pessoas que não poderão ser atendidas no sistema de saúde, na previdência social, ter acesso a determinados medicamentos, e que morrem muitas vezes nas filas dos Hospitais Públicos.

Apesar de toda esta realidade, não existe por parte dos órgãos de informação uma campanha efetiva para que no país seja feita uma lei federal que estabeleça que os crimes de corrupção, concussão, entre outros praticados contra o erário público sejam considerados hediondos, e que os infratores sejam efetivamente obrigados a restituírem o erário público, perdendo inclusive e de forma efetiva os seus direitos políticos, inclusive o patrimônio pessoal, quando ficar comprovado que este foi adquirido com dinheiro advindo do erário público.

Além disso, a população também não tem conhecimento que muitas pessoas possuem mandados de prisão expedidos, mas estes condenados não são presos por falta de vagas no precário Sistema Penitenciário Brasileiro, o qual não recebe os investimentos necessários para que o senso de impunidade deixe de ser uma realidade no arquétipo das pessoas. O infrator deve, quando existirem provas de autoria e materialidade ser efetivamente condenado e punido. Mas, este mesmo infrator tem o direito de ser levado para uma prisão que tenha as condições mínimas para que possa cumprir a pena que lhe foi imposta após um processo-crime, onde lhe tenha sido assegurada a ampla defesa e o contraditório com todos os recursos a eles inerentes.

Os postulados ora apresentados fazem parte daquilo que as pessoas muitas vezes até mesmo sem ter o pleno conhecimento ou o alcance do significado costumam chamar de Estado Democrático de Direito. Nesta espécie de Estado, o principal mandamento é a Lei, a qual deve ser cumprida e respeitada.

A sociedade na democracia tem o direito de apresentar as suas críticas, mas as mudanças somente podem ocorrer por meio do processo legislativo, que foi a via escolhida para a instituição das normas jurídicas que regem os comportamentos daqueles que vivem no território nacional.

O devido processo legal não se confunde com a impunidade, e todos os infratores devem ser condenados, mas as pessoas independentemente do crime praticado possuem o direito líquido e certo de se defenderem, o que não significa que ao final de um processo se provado a autoria e materialidade do ilícito, as pessoas ficarão livres do cumprimento de uma pena.

Apesar de todas essas considerações, se a sociedade chegar a conclusão que os princípios estabelecidos na Constituição Federal não possuem eficácia, e que estes princípios não devem mais ser observados e respeitados é preciso então que a Justiça, a Liberdade, a Democracia, sejam abandonadas e que se proceda a um retrocesso no tempo e no espaço e se volte a promover a Justiça na sociedade com o emprego das próprias mãos, tendo como base o princípio do olho por olho, dente por dente.

Uma análise imparcial dos fatos leva à conclusão que na realidade o que precisa ser feito é um aprimoramento do sistema, seja na função executiva, legislativa, ou judiciária, uma vez que a sociedade somente pode conviver em paz e em harmonia, buscando a realização dos objetivos coletivos e individuais, e até mesmo nacionais, quando tem como base a Lei e também um sistema jurídico.

A liberdade e a vida juntamente com a propriedade são direitos e garantias fundamentais dos brasileiros e estrangeiros que vivem no território nacional, sendo que estes bens somente poderão ser retirados de uma pessoa mediante o devido processo legal, onde deverão ser assegurados a ampla defesa e o contraditório, com todos os recursos a eles inerentes. No Brasil, não se admite que o Estado retire a vida de ninguém, e que ninguém também retire a vida de uma outra pessoa, mas se alguém retirar a vida de uma outra pessoa, praticando um ilícito, que poderá ser ou não hediondo, caberá ao Estado mediante um processo-crime decidir qual será a pena a ser aplicada.

Apesar de todo o sofrimento pelo qual as pessoas de New York passaram, os Estados Unidos, paradigma de muitos estudiosos, está submetendo um dos autores dos atentados de 11 de setembro a um processo-crime, onde lhe foi assegurada a ampla defesa e o contraditório, procedimento que costuma ser utilizado pelas Nações que afastaram o exercício da auto-tutela.

Assim funciona o Estado Democrático de Direito que foi o sistema escolhido pelo legislador constituinte originário quando da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, no dia 5 de outubro de 1988. Somente no Estado de Direito é que permite esse tipo de discussão, pois fora do império da lei não existe democracia, e também não existe liberdade, e ainda não existe devido processo legal. Pode-se afirmar que a Justiça pelas próprias mãos causa muito mais mal e muito mais sofrimentos do que a observância dos preceitos processuais que foram estabelecidos quando da promulgação da vigente Constituição Federal.

Disponível na internet www.ibccrim.org.br, 14.08.2006.