Justiça Militar e o Porte Ilegal de Armas

1. Introdução

A Justiça Militar possui a sua competência prevista na Constituição Federal de 1988, que estabelece expressamente que os militares, federais ou estaduais, serão processados e julgados pela prática de crimes militares definidos em Lei perante àquela Justiça Especializada, em atendimento ao princípio da legalidade ou da reserva legal.

Os civis, brasileiros e estrangeiros residentes no país, ou que estejam de passagem pelo território nacional, também podem ser processados e julgados pela prática de crime militar, em atendimento ao disposto no art. 9º, do Código Penal Militar, Decreto-lei 1001 de 1967, desde que o fato ilícito seja praticado no interior de uma Organização Militar Federal, OM, ou em local sujeito a Administração Militar Federal.

Por questões de ordem política, o legislador constituinte de 1988 vedou a Justiça Militar Estadual competência para processar e julgar os civis acusados da prática de um ilícito previsto no C.P.M, ou nas Especiais Militares. Em razão desta vedação constitucional, se um civil praticar um furto no interior de um quartel da Polícia Militar, ou do Corpo de Bombeiros Militar, deverá ser processado e julgado por este ilícito perante a Justiça Comum. Mas, se a res furtiva pertencer as Forças Armadas, o infrator civil será processado e julgado pela Justiça Militar da União. Essa distinção estabelecida pelo legislador configura uma incongruência, e viola flagrantemente os princípios gerais de direito.

Se um militar estadual praticar um crime de furto em co-autoria com um civil no interior de uma unidade das Forças Auxiliares, o processo deverá ser desmembrado, em respeito à regra constitucional, que contraria o princípio da unicidade do processo. Os princípios processuais juntamente com os princípios constitucionais integram as garantias asseguradas aos acusados em atendimento ao princípio do devido processo legal, art. 5º, inciso LV, da CF.

No ano de 1996, a competência da Justiça Militar, estabelecida na Constituição Federal de 1988, e que somente poderia ser modificada por meio de Emenda Constitucional, foi alterada pela Lei Federal nº 9.299, sob alegação que o princípio da imparcialidade não seria observado no foro especializado, que existe no país desde 1808.

A premissa utilizada quando da elaboração da Lei Federal nº 9.299 não encontra amparo fático ou jurídico. As decisões proferidas pela Justiça Militar são muito mais severas em razão das próprias disposições estabelecidas no Código Penal Militar. Na Justiça Castrense, que tem por objetivo preservar a hierarquia e a disciplina das Instituições Militares, que são responsáveis pela preservação da ordem pública, e da segurança nacional, não se permite inclusive na maioria dos casos a concessão dos benefícios previstos na Lei Federal nº 9099/1995, Juizados Especiais Criminais.

Não se pode esquecer ainda, que os Juízes-Auditores são magistrados concursados, aprovados em um concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, que integram o Poder Judiciário, Estadual ou Federal, com todas as garantias constitucionais, vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos. A Justiça Militar é uma Justiça Especializada, e não uma Justiça de Exceção como pretendem alguns, e os juízes que atuam perante este órgão do Poder Judiciário têm por objetivo promover a Justiça com a efetiva aplicação da Lei.

O devido processo legal tão defendido pelas organizações de direitos humanos não permite que nenhuma pessoa seja condenada sem a existência de provas que demonstrem de forma efetiva a autoria e a materialidade do fato ilícito. Deve-se observar ainda, que a ação penal militar é exercida de forma independente pelo Ministério Público, em atendimento ao disposto no art. 129, inciso I, da CF, por meio de um promotor de justiça concursado, que integra os quadros do Ministério Público Estadual, ou do Ministério Público Militar da União.

Além disso, qualquer decisão proferida pelos Conselhos de Justiça, Especial ou Permanente, permite a possibilidade de interposição de recursos para o Tribunal, Tribunal de Justiça Militar, nos Estados de Minas Gerais, São Paulo, e Rio Grande do Sul, e Tribunal de Justiça, nos demais Estados-membros da Federação, conforme dispõe a Constituição Federal. Existindo prequestionamento,e preenchidos os requisitos estabelecidos em Lei, a matéria discutida na ação penal militar poderá ser levada ao S.T. J ou S.T.F, por meio dos recursos especial e extraordinário.

Os juízes brasileiros atuam de forma imparcial e cumprem com as suas obrigações, ao contrário do mencionado por alguns críticos desprovidos de informações técnicas e científicas. Se assim não o fosse as Justiças Especializadas como a Eleitoral e a Trabalhista, que prestam relevantes serviços aos jurisdicionados, deveriam sofrer modificações em suas competências constitucionais por meio de Emendas Constitucionais, previamente discutidas com técnicos e interessados na prestação jurisdicional.

Portanto, não existem motivos para se alterar as competências previamente estabelecidas no texto constitucional, sob a alegação de possível parcialidade, ainda mais quando não existem dados científicos para que esta premissa encontre amparo.

2. Porte Ilegal de Arma

O art. 124 da CF estabeleceu que, “À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”. O dispositivo mencionado se aplica a Justiça Militar Federal, que tem por competência processar e julgar os militares federais que integram às Forças Armadas.

No caso da Justiça Militar Estadual, a sua competência foi estabelecida no art. 125, § 4º, da Constituição Federal, segundo o qual, “Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares, definidos em lei, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças”.

Na lição de Célio Lobão, em sua obra de Direito Penal Militar, Editora Brasília Jurídica, a Justiça Militar tem competência para processar e julgar os crimes militares, próprios ou impróprios, definidos no Código Penal Militar, ou nas Leis Penais Militares.

No caso de Leis Penais Especiais, que possuem um procedimento próprio previsto e estabelecido em suas normas, a competência para processar e julgar o militar é da Justiça Comum, Estadual ou Federal, em atendimento as regras de competência estabelecidas em Lei, e em razão da natureza do ilícito praticado pelo infrator.

O crime de abuso de autoridade praticado por policial militar conforme a Súmula 172, do Superior Tribunal de Justiça, deverá ser julgado pela Justiça Comum, o mesmo ocorrendo com as demais leis especiais, como por exemplo, a Lei de Segurança Nacional, que passou a ser de competência da Justiça Federal, em atendimento ao disposto no art. 109, inciso IV, da Constituição Federal.

No tocante ao crime de porte de armas, que deixou de ser contravenção penal e passou a ser tipificado como crime, cabe a Justiça Comum processar e julgar o policial militar que tenha praticado um dos ilícitos capitulados na Lei Federal nº 10.826/2003, que instituiu o denominado Estatuto do Desarmamento, que revogou a Lei Federal 9.437, de 20 de fevereiro de 1997.

A Justiça Militar Estadual, que tem a sua competência definida no texto constitucional, deve processar e julgar os integrantes das Forças Auxiliares nos crimes militares definidos em Lei Federal própria. Neste sentido, a Justiça Castrense não tem competência para julgar um ilícito que não esteja capitulado no Código Penal Militar, Decreto-lei n º 1001 de 1967, art. 9º, ou nas Leis Especiais Militares. O crime previsto em Lei Federal Especial deve ser julgado pela Justiça Comum, Estadual ou Federal, em atendimento aos princípios processuais e constitucionais atinentes à espécie.

Em diversas decisões, a 2ª Auditoria Judiciária Militar do Estado de Minas Gerais já decidiu em atendimento a exceção de incompetência argüida pelo Ministério Público do Estado que o porte ilegal de armas praticado por policial militar ou bombeiro militar deve ser julgado pela Justiça Comum.

3. Considerações finais

A Justiça Militar tem competência para processar e julgar os crimes militares definidos em lei, previstos no Código Penal Militar, ou nas Leis Especiais Militares, em respeito ao princípio da legalidade estabelecido na Constituição Federal, Declaração Universal de Direitos Humanos, e Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 5º, § 2º, da Constituição Federal.

Os militares integrantes das Forças Auxiliares no exercício de suas funções constitucionais têm o direito de utilizarem a força, coação administrativa, representada pelo uso e emprego das armas de fogo, conforme ensina a doutrina alemã representada por Otto Mayer.

O uso das armas é um direito do militar, mas este emprego deve ocorrer em conforme com a lei, para se evitar excessos ou arbitrariedades. A não observância das regras previamente estabelecidas traz como conseqüência a responsabilidade do infrator e do Estado-administração em atendimento a regra constitucional estabelecida no art. 37, § 6º.

As questões referentes ao registro, posse e comercialização de armas fogo e munição, são regulamentadas no território nacional por Lei Federal Especial. Atualmente, a matéria é tratada pela Lei Federal n º 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que revogou expressamente a Lei Federal n º 9.437 de 20 de fevereiro de 1997, estabelecendo punições mais graves para as pessoas que forem encontradas na posse ilegal de arma de fogo.

No caso dos militares, o uso de arma particular deverá ocorrer em conformidade com o estabelecido na Lei Federal nº 10.826 sob pena de ficarem sujeitos a responderam a um processo-crime, que deverá tramitar perante a Justiça Comum.

A competência para apurar os atos ilegais praticados por militares referentes ao porte ilegal de arma de fogo, ou outros ilícitos previstos nas Leis Especiais Federais, que não sejam crimes militares, é da Polícia Civil, militares estaduais, e da Polícia Federal, militares federais. Nestes casos, o inquérito policial é da competência destas autoridades policiais, e não da autoridade policial militar, que deverá levar os fatos ao conhecimento das autoridades competentes.

A adoção deste procedimento não impede a instauração do processo administrativo cabível para a apuração do ato disciplinar praticado pelo militar estadual, desde que este ato infracional esteja previsto no Regulamento Disciplinar da Corporação em atendimento aos princípios estabelecidos pela Constituição Federal de 1988.

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