Inutilidade do Direito e Injustiça Social.

O Direito, de modo geral, ergue seu sistema de normas jurídicas sobre presunções.

Presunção é um método intelectivo de conhecer certos fatos (verdades), mesmos sem apreendê-los diretamente, seja por meio da indução, seja por meio da dedução.

A indução é método pelo qual se formula uma verdade geral através da tomada de verdades específicas. Por exemplo: João é branco e rico; Pedro é branco e rico; Maria é branca e rica; Flávia é branca e rica; Ítalo é branco e rico. Qual a conclusão que se pode chegar? Que todas as pessoas brancas são ricas, ou que todas as pessoas ricas são brancas.

A dedução é o inverso. É método pelo qual se toma uma verdade geral (que chamo de pressuposto metodológico), para daí tirar conclusões individuais. Por exemplo: toda pessoa rica é branca. João é rico, logo João é branco. Pedro é rico, logo Pedro é branco. Maria é rica, logo Maria é branca. Flavia é rica, logo Flávia é branca. Ítalo é rico, logo Ítalo é branco.

A argumentação que se utiliza desses métodos costuma ser chamada de silogismo.

Não me utilizei desses exemplos à toa.

Os exemplos utilizados são justamente para incomodar o leitor.

Tenho que certeza que você, meu leitor, conhece pessoas brancas que são pobres; bem como conhece que pessoas ricas que são negras; bem como sabe que a sociedade brasileira tem pessoas que nem são brancas, nem são negras.

Você está certo.

O método utilizado que me levou a um erro, pois ele foi desenvolvido por mim propositalmente com dois defeitos.

Primeiro, quando praticado o método indutivo, foi utilizado um universo pequeno demais para averiguar a “verdade geral”, de modo que fui induzido a erro.

Segundo, quando praticado o método dedutivo, foi utilizado um estereótipo, um paradigma social falso, que levou a uma falsa percepção da realidade.

Meu silogismo conduziu-me a estipulação de um preconceito (no sentido não pejorativo, mas científico) que associa a cor da pele à riqueza.

Na sociedade em que vivemos a verdade é que a maioria das pessoas ricas são brancas, mas isso não é uma verdade geral absoluta, não é um presunção absoluta.

Temos aqui uma presunção relativa. A formulação mais correta seria que a maioria das pessoas ricas é branca.

Com base nessa presunção relativa, a política pode trabalhar para, por exemplo, buscar reduzir ou extirpar essa desigualdade sócio-econômico-cultural, realizando, através do Direito (finalmente voltamos ao Direito), ações afirmativas (política de cotas em universidade e cargos públicos, cursinhos grátis, bolsa de estudos etc.). Democraticamente (ou não), formam-se normas jurídicas que impõe à sociedade essa política de inclusão.

Atenção! Não estou discutindo a política de cotas. Aliás, apenas para matar sua curiosidade, sou absolutamente contrário a ela. (Aqueles que pensam que sou preconceituoso, por favor, deixem de ser preconceituosos vocês, pois fiquem sabendo que sou casado com uma negra, o que não me impede de ter um forma de pensar autônoma.)

De toda forma, espero que meu leitor tenha entendido a relação entre presunção, política e Direito.

Presume-se desigualdade, para então politicamente impor normas jurídicas que corrigirão essa desigualdade.

Todo o Direito é construído com base nesse caminho. E mais ou menos nesse jaez que Miguel Reale desenvolveu a teoria tridimensional do Direito (Fato, Valor e Norma).

Repetindo, o Direito é construído com base em presunções.

O grande problema é que, de modo geral, essas presunções não se concretizam.

Não estou falando aqui da típica presunção relativa e absoluta que se estuda em Direito, que se refere respectivamente à presunção que cabe prova em contrário (“iuris tantum”) e a que não cabe prova em contrário (“iure et de iure”).

Estou falando de presunções sociais.

Vou dar alguns exemplos, que servirão de base metodológica para o restante do texto.

Primeira, e mais veemente de todas, é a presunção de que todos conhecem toda a lei, todas as normas do Direito Brasileiro (artigo 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – decreto-lei nº 4.657).

Ninguém, repito, ninguém conhece todas as normas do Direito Brasileiro. Nem eu.

Se essa é a verdade, então como exigir das pessoas, e de mim, que se conduzam de acordo com as normas que elas não conhecem?

Ora, quebrou-se a lógica do conhecimento da norma como pressuposto de sua obediência.

Agora passemos para outra presunção relativamente fajuta.

O Direito Civil Brasileiro tem como regra a responsabilidade patrimonial das pessoas. Quer dizer, as pessoas respondem por suas dívidas primordialmente com seus bens.

Logo, se eu quero resguardar-me de “perder” patrimônio para pagamento de dívidas, devo evitar de fazê-las (por exemplo, evitando de bater meu carro no carro do vizinho, para que não tenha que pagar pelo conserto deste) ou, quando fazê-las, pagar (por exemplo, se fizer um empréstimo para compra de veículo, tenho que ter certeza que poderei pagar as parcelas).

Essa é a lógica que todo mundo deveria seguir, mas muita gente não segue.

Daí que entra o Direito Civil para obrigar-nos a pagar o que devemos.

Só que tem um detalhe.

Supondo que o devedor não tenha bens (chamamos, no Direito, essa pessoa de insolvente – na sociedade, chamamos essa pessoa de pobre), e o credor ingresse em juízo para receber pagamento, o que acontece?

Acontece nada.

Quer dizer, o credor ganha na Justiça o direito de receber o pagamento, mas como o pagamento recai sobre os bens do devedor, bens estes que não existem ou são impenhoráveis, esse direito é inútil, pois, no final das contas, credor não recebe o pagamento.

Enfim, todo um processo, todo um tempo e dinheiro gasto com expectativa, todo um ordenamento jurídico patrimonial foi como nada diante da ausência de patrimônio do devedor.

Certamente que muitos que acabaram de ler isto tiveram um alívio. Disseram um “Ufa!”, pois têm dívidas cobradas na justiça, mas não têm bens, ou são credores na justiça de pessoas que têm bens.

Outros se entristeceram, pois têm dívidas cobradas na justiça, mas têm bens, ou são credores na justiça de pessoas que não têm bens.

De toda forma, metade das hipóteses tristeza/alegria são tristeza. O que, embora seja cômico, também é trágico.

Voltando para a realidade.

Somos um país onde a maioria das pessoas não têm bens (excluído os bens impenhoráveis).

E para piorar a situação, são muitos os mecanismos fáticos e processuais pelos quais é possível, mesmo tendo bens penhoráveis, fraudar credores. Certamente que meu leitor conhece algum ou já ouviu falar de laranja, testa de ferro, homem de palha, espantalho – alguém que tem formalmente bens, mas que na verdade são de outra pessoa.

Pois é.

As pessoas além de não terem bens, quando os tem, facilmente conseguem fraudar seus credores, passando-os para terceiros.

Essa parte, para mim é apenas trágica, pois devo reconhecer que o Direito, nesse ponto, ou se mostra inútil, ou se mostra ineficaz.

Claro que quando se fala de grandes empresas devedoras, como bancos, industrias, empresas telefônicas e sólidas empresas de construção, isso não chega a ser um problema para quem é credor.

Mas, na vida, nossos relacionamentos com essas empresas é menor e mais estável – e estas mesmas se tornaram o que são também por evitarem dívidas desnecessárias, para poder vencer no mercado e não falir.

Quanto ao resto, o Direito Civil Patrimonial é, na maioria das vezes, inútil.

Por isso que é importante ter sorte ou inteligência quando se negocia ou convive com pessoas comuns.

Daí alguns poderiam pensar no Direito Penal.

Prendamos os devedores safados, além dos próprios criminosos em si.

E do que adianta?

Isso não quer dizer que as dívidas serão pagas, pois, na maioria dos casos, as pessoas não fraudam: elas só são pobres mesmo.

Além do mais, o próprio Direito Penal é construído sobre pressupostos falsos, que se revela em nossa sociedade pela crescente violência.

Direito Penal é ilusório.

Poucos são os casos de crimes apurados.

Menos ainda os que são alvo de processo.

Menos ainda os que resultam em condenação.

Menos ainda os que resultam em efetiva punição.

E quando se pune, forma-se, de regra, um deliquente mais preparado e motivado para a deliquência.

É triste, mas o Direito Penal é inútil também

Nem comentarei o Direito Administrativo, pois eu não quero passar raiva falando de precatório, vantagens processuais da Fazenda Pública e juízes que ainda pensam que não se pode entrar no mérito administrativo etc.

Enfim.

O Direito Brasileiro está construído em um monte de premissas falsas, de modo que, na prática, se tornou mais um símbolo que uma realidade. Nosso Direito calha na inutilidade. É uma verdade pessimista, mas é a verdade.

Porque?

Por que, na nossa sociedade, reina a Injustiça social.

Uma das primeiras lições que se aprende em Direito é a diferença entre Direito e Justiça Social.

O Direito é a ciência que estuda as normas jurídicas (dever-ser).

A Justiça Social é um conceito político relacionado ao dever de buscar o bem comum (seria-bom-que-fosse-assim).

O Direito é construído com base em premissas de Justiça Social. Idealmente ele funciona, pois a sociedade funcionaria regularmente.

Quer dizer:

I- Se exige-se das pessoas o cumprimento do Direito (Direito), é porque as pessoas o conhecem (Justiça Social)

II- Se existe o Direito Patrimonial baseado na regra da responsabilidade patrimonial (Direito), tem-se como pressuposto que as pessoas têm bens para responder por suas dívidas (Justiça Social).

III- Se existe o Direito Penal baseado em punições severas a quem comete crime (Direito), tem-se como pressuposto que a punição traga efetivamente reflexos sociais positivos (Justiça Social).

Só que, não sendo essa a realidade, ou seja, reinando a Injustiça Social, o que ocorre com o Direito?

Ele se torna apenas um símbolo. Ele se torna inútil.

Ele pode até ser um símbolo bonito. Um sistema bem ordenado.

Mas é inútil.

O que fazer?

Concretizar a Justiça Social em cada uma dessas presunções:

I- Se exige-se das pessoas o cumprimento do Direito (Direito), ensine-se o Direito. (Isso já resolve um momento de problemas, pois educação é a base de tudo.)

II- Se estabelece-se a regra da responsabilidade patrimonial, efetive-se a idéia de sociedade com uma baixa desigualdade de renda e patrimônio.

III- Se estabelece-se punições severas para quem comete crimes, torne-se efetiva a idéia de certeza dessas punições, bem como o caráter reintegrador-pedagógico das mesmas.

Isso é Justiça Social.

Isso é tornar o Direito útil.

Como se pode perceber, tudo isso depende muito da política.

A política depende muito de cada cidadão.

Por isso, cabe a cada cidadão brasileiro exercer seus direitos políticos com sabedoria.

Espero que esse texto tenha servido para ensinar alguma coisa, bem como para gerar alguma reflexão.

Se você concorda ou discorda com alguma coisa dita, ou se não entendeu alguma coisa, ou se deseja criticar, comente abaixo.

Abraço a todos.