Inquérito policial pode gerar vícios no processo penal?

Questão bem resolvida na doutrina processual penal brasileira é fato de que o Inquérito Policial não gera vícios que contaminem o processo penal. Isso se fundamenta na instrumentalidade deste em relação ao processo e à peça acusatória. Ademais, o inquérito nem é obrigatório para a propositura da ação penal.

Pelo menos para fins de concurso público, essa é a resposta à correta, sem sombra de dúvida.

Eu concordava com esse entendimento. Mas, estudando, não por epifania dessa vez, mas por pura reflexão, mudei de ideia.

Gostaria de compartilhar minhas novas ideias sobre o assunto com os colegas juristas, os quais terão toda a liberdade para discordar e criticar meu posicionamento.

Como já escrevi noutro artigo, o inquérito policial (chamemos agora de IP) tem uma função importantíssima: apurar a materialidade e a autoria de infrações penais, deflagrando a persecução criminal, com o objetivo de instruir a peça acusatória.

Da mesma forma, cabe lembrar que, de regra, o IP não tem um procedimento predefinido, pois, o contexto da investigação criminal é tão variável, que não seria possível estipular com antecedência quais serão os atos necessários a apuração das infrações penais.

Realmente, o legislador, no CPP, elenca exemplificadamente uma série de atos investigatórios, que, conforme o caso concreto, serão realizados ou não.

Mas, atente-se: eu não grifei a expressão “de regra” à toa. Existem sim alguns atos obrigatórios na IP.

A hipótese mais famosa é exame de corpo de delito. Isto nada mais é que o exame dos vestígios do delito. Ressalte-se: sua realização, de regra, é obrigatória, caso o delito deixe vestígios.

Vejamos alguns exemplos de exame de corpo de delito.

No homicídio, encontrando-se o corpo, é obrigatória a realização do exame cadavérico. No disparo de arma de fogo, é obrigatória a realização do exame de balística. Quem é penalista e processual penalista a mais tempo do que eu pode lembrar de mais uns 50 exemplos.

Ok.

Digamos que: a) o IP foi terminado sem realizar o exame de corpo de delito, sendo que os autos foram remetidos para o membro do Ministério Público (chamaremos de MP), que propôs ação penal.

O juiz deve receber a denúncia?

...

Sendo bem legalista, a resposta é não. Se a lei diz ser obrigatória a realização do ato “exame de corpo do delito” antes do processo penal propriamente dito, ou seja, no seio do IP, não poderia começar o processo sem o cumprimento desta regra.

Mas, qual seria o defeito técnico-processual da denúncia?

Os motivos podem ser vários, conforme a linha doutrinária de cada um. Na minha opinião, haveria falta de um dos elementos específicos da ação penal, a saber, da justa causa.

Mas, independente disso, onde nasceu esse vício?

Tchan, Tchan, Tchan!

No IP, meus amigos.

O vício está no inquérito por descumprimento de regra processual: não realização do exame do corpo de delito.

Como o tema é polêmico, vou dar mais 3 exemplos.

Digamos que haja necessidade de realização de identificação criminal tendo em vista que o suspeito não porta nenhum instrumento de identificação. Mas essa identificação não é feita. O IP é terminado. O MP faz a denúncia contra João de tal, sem RG, sem CPF, sem residência fixa, estado civil indefinido, sem emprego definido, origem indefinida, idade indefinida, cabelo castanho levemente ondulado, pele morena, olhos castanho, 1,65 metro de altura e 68 quilos, sem barba ou bigode, preso na delegacia nº tal.

O juiz deve recebe a denúncia?

Não.

Por que?

Eu vi em uma doutrina que dizia que havia ilegitimidade da parte requerida. Não concordo.

Mas, independente disso, onde nasceu o vício?

No IP.

Vou dar mais um exemplo: no crime de tráfico de drogas, com a apreensão destas, estas devem ser obrigatoriamente periciadas, para ver se é droga mesmo, e não farinha de mandioca, farofa par churrasco da marca Yoki, ou pós de giz, ou cimento, em sacos plásticos amarrozados, que simplesmente estavam escondidos nos fundos falsos de caminhões suspeitos. Na minha opinião, é a mesma coisa fazer o exame de corpo de delito, a diferença é que o vestígio é um entorpecente.

Imaginemos que a apreensão da droga foi feita, mas a perícia não. O IP é terminado. O MP faz a denúncia.

O juiz deve recebe a denúncia?

Não.

Onde nasceu o vício?

Foi no processo? Foi na denúncia? Foi no estagiário? Foi no faxineiro que limpa o banheiro dos magistrados do sexo masculino?

Não!!!!

Foi no IP. Quem errou primeiro foi o órgão responsável pela investigação.

Último exemplo.

O indiciado tem direito a ser ouvido no curso do IP?

Salvo melhor juízo, sim. Há doutrina que confirma isso. De qualquer forma, o Código de Processo Penal, regulando o auto de prisão em flagrante (APF), diz que é obrigatória a oitiva do preso.

Digamos que o IP ou APF é terminado sem a realização da oitiva do indiciado. O MP oferece a denúncia.

O juiz deve receber a denúncia?

Não.

Onde nasceu o vício?

Advinha...

No IP, de novo.

Bem, nessas 4 hipóteses, vício no IP impediu a recepção da denúncia, viciando o próprio processo, ou, no mínimo, a ação penal. Claro que em todos esses exemplos a vício é passível de correção, mas eles comprovam que existem hipóteses de que vício no IP contamina o processo.

O membro do MP deveria ter pedido novas diligências à autoridade responsável pela investigação, para, a partir de então, suprida a falta, oferecer a denúncia.

Conclusão final: vício no IP pode contaminar o processo penal, em alguns casos, a exemplo do que ocorre nos casos de não realização, quando obrigatória e possível, de: a) exame de corpo de delito; b) identificação criminal quando o identificado não tiver nenhum instrumento de identificação; c) perícia sobre drogas no crimes de tráfico de drogas; d) oitiva do indiciado no IP ou do autuado em flagrante no APF.

Mas, cuidado: de regra, vício de IP continua sem contaminar o processo penal. Exemplo: se um delegado federal faz um IP de crime que não seria de sua competência, inexistiria vicio no processo por causa disto.

Mais ainda cuidado em concurso público: neste, diga que o IP não pode gerar, de forma nenhuma, vícios contaminadores do processo penal, pois é o que prevalece na doutrina.

Se alguns dos nobres colegas juristas discordam destes apontamentos, compartilhe conosco vossa sapiência.