Normas restritivas se interpretam restritivamente?

Indubitável no estudo do Direito a importância de dois temas: direitos fundamentais e hermenêutica.

Numa definição simplista, poderíamos dizer que os direitos fundamentais são direitos previstos na Constituição, os quais tem como pressuposto sua essencialidade para o convívio social, e, na maioria dos casos, decorrem da dignidade da pessoa humana.

Doutro lado, para viabilizar esse “convívio social”, se faz necessária a contenção dos direitos fundamentais, de modo a harmonizá-los democraticamente ao interesse público, e, na medida do possível, dar-lhes máxima eficácia.

Por óbvio, tal tarefa é complexa e envolve um contínuo diálogo entre Poderes Públicos e a sociedade, processo dialógico esse em que se destaca a hermenêutica e a interpretação da Constituição e das leis.

Conforme se discute tais questões, elaboraram-se algumas frases (topos) que, de tão famosas e repetidas, acabam calhando quase como uma verdade absoluta. Dentre essas sentenças, podemos citar a que afirma: normas restritivas (de direitos fundamentais) interpretam-se restritivamente.

Mas, será que esta frase em específico está mesmo correta?

Veremos que não.

Bem, para começar, lembre-se que não se interpreta norma jurídica. Norma jurídica são passíveis de aplicação, e não de interpretação. O que se interpreta são textos (normativos), dos quais se extraem normas (regras e princípios). Sobre o tema, vale conferir a obra de Humberto Ávila denominada “Teoria dos Princípios”.

Tendo isso em mente, a frase já está errada, pois, ninguém interpreta uma norma, mas um texto. O correto seria afirmar que textos com conteúdo restritivo devem ser interpretados restritivamente.

Em segundo lugar, precisamos entender o que significa interpretar restritivamente ou de forma restritiva.

Interpretação restritiva é espécie de interpretação contida na classificação da interpretação quanto ao resultado.

Quanto ao resultado da interpretação, esta pode ser uma interpretação:

a) declaratória – pela qual se constata a identidade entre o que foi dito pelo legislador e o que este “quis dizer”;

b) extensiva – pela qual o intérprete conclui que o legislador disse menos do que “queria dizer”, o que se corrige mediante uma ampliação do sentido literal do texto legal;

c) restritiva – pela qual o intérprete conclui que o legislador disse mais do que “queria dizer”, o que se corrige mediante uma supressão do sentido literal do texto legal;

Diante disso, voltemos à questão: textos restritivos de direitos se interpretam restritivamente?

Vejamos exemplos, pois, fazendo uso do método indutivo torna-se mais fácil a compreensão.

No art. 117, XII, do Estatuto dos Servidores Civis da União, temos uma proibição à liberdade patrimonial do servidor, vedando a estes o ato de receber uma doação pelos seus serviços, doação essa que o legislador chamou de “propina”.

A proibição da propina deve ser interpretada de forma restritiva? O servidor pode, por exemplo, receber uma “propinazinha” ou doações de “pequena monta” pelo cumprimento de seus serviços?

Não. Não seria admissível essa redução do sentido da cláusula proibitória.

Doutro lado, ao mesmo tempo em que se aprecia este texto legal, atentando ao seu viés axiológico, sufragados pelos princípios da moralidade e eficiência, o servidor público também não poderia, por exemplo, celebrar contratos extremamente vantajosos, como forma de disfarçada de receber sua propina ou vantagem.

O que seria isso senão uma interpretação extensiva da proibição?

Vamos para outro exemplo bem interessante.

É cogente que a nossa Constituição proíbe que qualquer servidor público receba uma remuneração superior ao do que receba um Ministro do STF.

Se essa proibição for interpretada restritivamente poderíamos afirmar que algum servidor poderia perceber verbas remuneratórias pouco ou muito superiores a tal patamar, criando exceções mal quistas pelo constituinte originário, de modo que se torna muito conveniente interpretar a proibição de forma declaratória.

Nesse sentido, tem-se que os dispositivos legais restritivos de direitos supracitados ostentam a capacidade tanto de serem interpretados de forma declaratória, e, em alguns casos, sustentados em seu viés valorativo, de forma extensiva.

Portanto, cai por terra a afirmação de que um texto normativo restritivo deva ser obrigatoriamente interpretado de forma restritiva, quer dizer, restringindo o alcance e o sentido das palavras utilizadas pelo legislador.

Não se está aqui a dizer não existam casos em que esse tipo de texto seja interpretado de forma restritiva. Sim, é possível. Para tanto, aproveitemos o exemplo do teto de remuneração dos servidores públicos.

É admitida na jurisprudência e na doutrina que esse teto pode ser suplantado em pelo menos uma situação: exercício cumulado por ministro da Suprema Corte do cargo de ministro do Tribunal Superior Eleitoral. Trata-se de autêntica interpretação restritiva fundamentada no princípio da vedação da isonomia e do enriquecimento sem causa.

Logo, textos restritivos admitem estas três formas de interpretação quanto ao resultado (declaratória, extensiva e restritiva), na medida em que estes resultados se coadunem aos valores de nosso sistema jurídico, o que pode ser aferido mediante diversas formas da argumentação lógico-jurídica.

Ante o exposto, pode-se concluir que a famigerada sentença (“normas restritivas se interpretam restritivamente”) não passa de um provérbio jurídico construído sem base científica, não permitindo o jurista dele se utilizar de forma irrefletida.

Por fim, vale salientar que não se nega que a frase seja desprovida de uma “boa intenção”. Afinal, é desejável que o exercício dos direitos fundamentais seja o mais amplo possível, não se admitindo restrições que firam a proporcionalidade ou que imponham limites injustificados.

Todavia, não se pode perder de vista que também é essencial a própria limitação dos direitos e liberdades, sob pena de se inviabilizar a vida em sociedade e o Estado de Direito.

Assim, o intérprete da Constituição e demais elementos normativos deve estar sempre atento a necessidade de construir um sistema equilibrado de normas, ou seja, que estabeleça um equilíbrio entre direitos e deveres, tarefa essa em que serão úteis todos os elementos, métodos e resultados de interpretação.

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