Inquérito policial: processo ou procedimento?
Questão relativamente bem resolvida na doutrina processual penal brasileira é fato de que o Inquérito Policial (IP) não é processo, mas sim procedimento administrativo. Pelo menos para fins de concurso público, essa é a resposta correta, sem sombra de dúvida.
Eu concordava com esse entendimento. Contudo, certo dia, na minha jornada de estudos, tive uma epifania. Gostaria de compartilhar minhas novas ideias sobre o assunto com os colegas juristas, os quais terão toda a liberdade para discordar e criticar meu posicionamento.
Iniciando, é preciso lembrar, de forma simplificada, a diferença de processo e procedimento.
Bem, processo, numa perspectiva objetiva e jurídica, é um conjunto de atos jurídicos organizados para a formação de um ato final (em geral, uma norma). Mutatis mutandis, este é o conceito de Chiovenda, em seu livro “Instituições de Direito Processual Civil”.
E procedimento?
O modo que se dá essa organização desse conjunto de atos – forma exterior do processo. Nesse sentido, tem-se Cintra et al, no famoso livro “Teoria Geral do Processo”.
Para exemplificar, vejamos o processo penal. O processo penal é o conjunto de atos jurídicos organizados para a formação de um ato final, que, de modo geral, é a sentença penal.
O procedimento que se dá a esse processo pode mudar de acordo com a lei, a qual prevê o procedimento comum ordinário, comum sumário, comum sumariíssimo, especial, tribunal do júri etc.
Essa mudança de procedimento também se observa no processo civil, processo legislativo, processo do trabalho.
Simplificando: processo é o conjunto de atos para formação de um ato final; procedimento é modo como processo chega a esse ato final ou modo de organização desse conjunto de atos.
Observe bem. Processo é um conjunto de atos, ou seja, vários atos, com uma finalidade. Procedimento é modo desse processo, é um atributo do processo que modifica a organização de seus atos. Ou seja, procedimento não é uma coisa com existência autônoma. O procedimento é um atributo do processo.
Diferente do processo. Processo é um ser coletivo com existência autônoma, que varia em seu procedimento, nos termos da lei.
Vou exemplificar com algo fora do campo do Direito.
A expressão “fabrica de carros” traduz a ideia de um conjunto de atos organizados para produzir, em seu ato final, carros. Porém, a fabricação desses carros pode ser feita de modos diversos, conforme o método desejado e disponível (modelo fordista, toyotista ou taylorista). A palavra “fabricação” é substantivo abstrato, sobre qual recai o método, funcionando este como um advérbio de modo.
Diante disso, pergunta-se: há como existir o método de fabricação sem a fabricação?
Não. É inerente e anterior ao método da fabricação, a própria fabricação em si.
Processo é equivalente a fabricação, e, procedimento, ao método da fabricação.
Nessa mesma lógica, entendo que é inerente e anterior ao procedimento do processo o próprio processo em si. Ou seja, repetindo, procedimento é atributo do processo, não podendo existir sozinho, autonomamente, mas sim, ao lado do processo, em virtude deste, qualificando este, organizando os atos deste, dando feição externa a este.
Agora vejamos a frase “IP é um procedimento”.
Como vimos, procedimento é um modo de organização de processo.
Então, poderíamos substituir a frase “IP é procedimento” por “IP é um modo de organização de processo”?
Não! Não faz sentido dizer IP é um “atributo adverbial” do processo, pois IP tem uma existência autônoma. Na verdade, na fase do IP, sequer existe processo penal.
E esse “atributo” iria qualificar o que?
O nada?
Para piorar, devemos lembrar que IP, seja á o que ele for, sequer tem um procedimento predefinido. É quase como se não tivesse procedimento.
Ora, então poderíamos afirmar que “IP é procedimento sem procedimento” ou “IP é modo de processo sem procedimento predefinido”?
Convenhamos que não, sob pena de sacrificarmos nosso bom senso.
Ou seja, IP não é modo. IP é uma coisa, e sobre esta coisa podemos observar atributos, dentre eles, a ausência de procedimento predefinido.
Então, IP é o que?
Processo?
Porque não?
Vejamos novamente o conceito jurídico de processo: processo é o conjunto de atos organizados para formação de um ato final. Nesse diapasão, para existir um processo, deve estar presentes os seguintes requisitos: a) conjunto de atos; b) organização desses tendentes a formação de ato final.
IP cumpre os dois requisitos?
Sim. IP é constituído por vários atos que culminam na formação de um ato final, a saber, o relatório.
Então IP é processo! É um processo administrativo de apuração de materialidade e autoria de infrações penais, sem procedimento predefinido, que culmina no relatório.
Doutro lado, deve-se observar que, considerando que o IP não tem procedimento predefinido, não faria sentido afirmar que é um procedimento sem procedimento predefinido.
Salvo melhor juízo, faz muito mais sentido afirmar que IP é processo sem procedimento predefinido.
Então IP é um processo.
Só que, adotando este posicionamento, enveredamos por outro problema: se IP é processo (administrativo de investigação), a ele deve ser aplicado o princípio do contraditório e da ampla defesa, nos termos da Constituição Federal?
Se sim, haveria um problema, pois permitir a participação do investigado na investigação seria algo que poderia comprometer a própria eficiência do IP...
Não, meus amigos! A estória não é bem assim.
Vejamos com atenção do texto do Constituição Federal:
“Art. 5ª[...] LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”
Não está escrito que em todo processo haverá contraditório e ampla defesa. Nem está escrito que em todo processo administrativo haverá contraditório e ampla defesa.
Haverá contraditório e ampla defesa desde que haja, permita-me o grito, LITIGANTES, ou seja, pessoas em LITÍGIO.
Senhores, no IP, não há litígio. Ademais, nem todo processo tem litígio, quer dizer, contraposições de interesses (partes brigando pelos seus direitos). Quanto a isso, temos muitos exemplos processuais, além do próprio IP.
Vale dizer, nos processos de controle concentrado de constitucionalidade não há contraditório e ampla defesa, vez que neles não há uma lide.
Da mesma maneira, no processo legislativo também não há lide, por isso não tem contraditório e ampla defesa.
Processo (procedimento, se quiserem assim) licitatório, da mesma forma, não subjaz em lide, logo não tem contraditório e ampla defesa.
...
No IP não tem lide, de modo que não deve haver contraditório e ampla defesa – exceto o inquérito de expulsão de estrangeiro, nos termos da Lei Federal n. 6.815.
Então, pelo menos para a doutrina que entende que no IP não há contraditório e ampla defesa, não haveria problema metodológico ou científico em classificar tal instituto como processo.
Desse modo, pode-se concluir que Inquérito Policial é processo administrativo e, considerando que neste não há litigantes, pode se desenvolver sem contraditório e ampla defesa, à luz da interpretação gramatical da Constituição.
Contudo, também não me satisfaço com essa exegese literal.
A Constituição Federal diz que, obrigatoriamente, nos processos em que há lide, devem ser respeitados os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Todavia, o Texto Magno não vedou a aplicação de tais normas nos processos em que não haja lide.
Outrossim, se IP é processo, sem dúvida alguma que ele se submeterá ao princípio do devido processo legal – sendo que deste decorrem todos, senão a maioria, dos princípios processuais constitucionais, dentre eles, os do contraditório e da ampla defesa, na medida em que se façam caros a defesa de direito fundamentais e da necessidade de contenção do arbítrio estatal.
Como o tema suplanta a esfera do Inquérito Policial, vez que, para boa parte da doutrina, não seria o único processo ou procedimento em que estariam ausentes esses princípios, deixemos esse tema para o próximo artigo.
Conclusão final: considerando que procedimento é atributo de processo, não tendo existência autônoma, e que IP tem existência autônoma, e não atribui qualquer característica formal ou metodológica a outro processo; considerando que não faria sentido afirmar que IP é procedimento sem procedimento predefinido; considerando que IP se encaixa na definição objetiva de processo – tem-se por devido considerar que IP é um processo, e não um procedimento.
Se no IP deve ser respeitado os princípios do contraditório e da ampla defesa, mesmo quando não tem lide, discutir-se-á noutra oportunidade.