Faltar à verdade – direito ou ilícito administrativo?

Segundo a Constituição Federal existe no Brasil duas categorias de servidores militares. Os militares que são integrantes das Forças Armadas e funcionários públicos militares, estando subordinados ao Ministro da Defesa e ao Presidente da República, que é o seu comandante supremo. Os militares que integram as Forças Auxiliares e são funcionários públicos estaduais, estando subordinados ao Secretário da Segurança Pública e ao Governador do Estado, que é o seu comandante supremo.

Os militares federais são regidos pelo Estatuto dos Militares e por Regulamentos Disciplinares, sendo que cada força possui o seu próprio Código Disciplinar. Os militares estaduais deveriam ser regidos por Lei Orgânica ou por um Estatuto próprio, mas estão sujeitos a Regulamentos Disciplinares, que em regra são muito semelhantes aos Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas.

A Constituição Federal de 1988 diz que, “aos acusados em processo judicial ou administrativo e aos litigantes em geral são assegurados a ampla defesa e o contraditório com todos os recursos a ela inerentes”, art. 5.º , inciso LV.

Com o advento da nova Constituição, o processo administrativo dos funcionários civis ou militares passou por modificações, sendo que muitas disposições de decretos e normas infra-constitucionais não foram recepcionadas. Estas foram revogadas tacitamente por estarem em conflito com o texto constitucional.

No processo crime, o acusado não encontra-se obrigado a se auto acusar, ou melhor, poderá apresentar sua própria versão dos fatos mesmo que esta esteja em conflito com as provas dos autos. O acusado mesmo que tenha confessado na Polícia Judiciária o ilícito penal poderá em juízo modificar o seu depoimento, devendo o juiz valorar todas as provas para que possa formar seu juízo de convencimento.

Na área administrativa, por disposição disciplinar faltar à verdade configura transgressão grave. O militar que indagado a respeito de um falto apresentar uma versão diversa do que ocorreu estará sujeito a ser punido pro seus superiores.

A vida militar exige de seus integrantes uma maior dedicação, e estes encontram-se sujeitos a preceitos disciplinares representados pelos Regulamentos, e a preceitos penais como o Código Penal Militar e as Leis Militares. Mas, não se pode esquecer que por força da Constituição Federal, art. 5.º caput, todos são iguais perante à lei.

Em um processo administrativo que está sujeito ao princípio do devido processo legal, due process of law, deve ser assegurado ao acusado a ampla defesa e o contraditório, a aplicação do princípio da inocência, a igualdade entre as partes, o princípio da imparcialidade, garantido-se ao militar que responde a processo o direito de faltar a verdade.

No processo crime, o acusado não presta declarações sob o compromisso de dizer a verdade e o mesmo ocorre no processo administrativo. Poderá em sua auto-defesa, que é exercida no momento do seu interrogatório perante a autoridade administrativa, apresentar a versão que mais lhe favoreça, sem que fique sujeito a um novo processo por ter praticado a transgressão disciplinar grave de faltar à verdade.

Com o novo texto constitucional, o processo administrativo foi judicializado, ou seja, as mesmas garantias que são assegurados ao acusado em processo judicial são assegurados aos servidores que respondem a processo administrativo.

Por força da Constituição Federal, a administração pública deve assegurar aos seus integrantes o direito de serem assistidos por um advogado, e quando do interrogatório o direito do acusado de permanecer em silêncio, sem que isso possa ser usado em seu prejuízo. E ainda, a possibilidade da realização de todas as provas em direito admitidas e aceitas pela jurisprudência dos Tribunais.

Percebe-se que o processo administrativo não é mais uma peça informativa, onde o acusado recebia uma notificação para que no prazo de três dias apresentasse sua defesa, e superada essa fase aguardasse a aplicação da sanção administrativa. Novas garantias foram introduzidas no processo administrativo e essas são decorrentes das garantias e direitos fundamentais enumeradas no art. 5.º do texto constitucional.

No exercício de sua defesa em processo administrativo, o militar em nenhum momento pratica a transgressão disciplinar de faltar à verdade. Somente existirá este ilícito administrativo quando praticado em uma outra situação, que não seja o exercício constitucional da ampla defesa e do contraditório.

Ao enquadrar o militar na transgressão disciplinar de faltar à verdade que tiver sido exercida dentro do processo administrativo, estará a autoridade militar praticando um ato excessivo, que fere os direitos e garantias fundamentais outorgadas no art. 5º da Constituição Federal.

Com base nos preceitos constitucionais, pode-se afirmar que o militar em sua auto-defesa poderá apresentar a versão que mais lhe seja favorável, sem que isso signifique qualquer violação ao Regulamento Disciplinar, não podendo ser punido por estar exercendo sua defesa dentro dos limites da Lei.

Notas:

O texto foi originariamente publicado no site do Centro de Estudos de Direito Militar, Cesdim em 2003, e publicado neste site em 14/01/2007.

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