Natureza Jurídica dos regulamentos disciplinares militares estaduais e federais em face da Constituição Federal de 1988

1 Introdução

A sociedade brasileira, com o advento da Constituição Federal de 1988, tem buscado a construção de novos paradigmas, que estejam em conformidade com o Estado Democrático de Direito. A construção de uma nova ordem jurídica significa o respeito à lei e às garantias que foram estabelecidas pelo texto constitucional.

O militar é o homem ou a mulher que, ao ingressar em uma corporação, estadual ou federal, aprende que dois são os sustentáculos das Instituições Militares, a disciplina e a hierarquia, e no Estado e Minas Gerais por força de lei, a ética. A vida do militar deve se pautar por estes princípios e muitas vezes o cumprimento da missão constitucional exige até mesmo o sacrifício da própria vida, o chamado tributo de sangue.

A prática de uma transgressão disciplinar militar, ou contravenção militar, como prefere a Marinha de Guerra do Brasil, traz como conseqüência o nascimento do jus puniendi do Estado que, no âmbito das Forças Militares, é representado pela Administração Militar. Nenhuma pessoa que ingressa na vida militar acredita que esta será igual à vida dos integrantes da sociedade civil.

Antes de tudo, o militar tem um compromisso com a sociedade à qual se destina os serviços públicos, que devem ser de qualidade e prestados com eficiência, conforme estabelece expressamente o art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988 (CF/88). As pessoas que não conseguem se adaptar a vida militar não devem nem mesmo ingressar nestas Corporações, que costumam apresentar uma severidade maior do que aquela encontrada nas demais Instituições Civis.

A obediência é uma característica do militar, mas isso não significa que este profissional não tenha direitos e garantias que lhe foram assegurados pela CF/88. A sanção é uma conseqüência do descumprimento de uma disposição legal, mas isto não significa que o militar não tenha direito a ampla defesa e ao contraditório.

Acontece que, no intuito de se questionar a corrente que defende a aplicação dos princípios constitucionais no processo administrativo disciplinar militar, alguns têm alegado que a aplicação desses princípios estão contribuindo para a impunidade e o afrouxamento da disciplina militar. Tal afirmativa, não passa de mera especulação e se encontra divorciada da realidade. Em nenhum momento, se diz que a administração militar não se preparou de forma adequada para uma efetiva adaptação das normas administrativas às disposições constitucionais.

Qualquer sanção disciplinar por mais severa que seja deve ser aplicada de forma efetiva a todo aquele que descumpre um preceito previamente estabelecido. Nenhum militar, do soldado ao general, almirante ou brigadeiro, deve ficar impune caso venha a praticar alguma irregularidade contrária aos preceitos previstos nos regulamentos disciplinares.

A sociedade não aceita mais que aqueles que fizeram um juramento de defender as Instituições e as pessoas até mesmo com o sacrifício de sua própria venham a praticar atos que possam macular a imagem das Instituições Públicas. Somente uma pessoa que desconheça a vida castrense poderia defender a impunidade ou mesmo o rompimento da estrutura militar.

Na realidade, a manutenção dos princípios basilares das Instituições Militares não se confunde com o arbítrio. Todos tem o direito de exercer em um processo administrativo, disciplinar ou não, a ampla defesa e o contraditório, ainda mais quando a imposição de uma sanção disciplinar possa causar prejuízos ao militar no decorrer de sua carreira, que é marcada por sacrifícios, renúncias, e por dificuldades e constantes mudanças.

2. Transgressões disciplinares e regulamentos militares

Segundo consta da maioria dos regulamentos militares, federais ou estaduais, as transgressões disciplinares são classificadas em leves, médias e graves. Nesse sentido, assim como ocorre com o Código Penal, Brasileiro e Militar, para cada tipo de transgressão disciplinar poderá existir um tipo de procedimento administrativo, o qual permitirá de forma efetiva a manutenção dos preceitos militares.

A corrente doutrinária que defende que os regulamentos disciplinares poderão ser instituídos por meio de decretos provenientes do Poder Executivo, não leva em consideração que o texto constitucional de 1988 foi expresso, claro, e não deixou dúvidas, que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária compete, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.

O art. 5º, inciso LXI, da Constituição Federal de 1988, não permite uma interpretação pro-administração. A norma constitucional estabeleceu um preceito legal, qual seja, os regulamentos disciplinares devem ser instituídos por meio de lei e não por meio de decreto proveniente do poder executivo.

No entender da doutrina, o intérprete não deve e não pode substituir em sua interpretação à vontade do legislador. Nesse sentido, o legislador de 1988, por mais que parte da doutrina especializada na seara militar se esforce em defender um posicionamento diverso, teve por objetivo estabelecer que os regulamentos disciplinares pós 1988 somente podem ser alterados ou mesmo estabelecidos por meio de lei.

Assim, os regulamentos disciplinares anteriores a CF/88 e que tinham sido estabelecidos por meio de decreto proveniente do Poder Executivo foram recepcionados como lei, o que aconteceu, por exemplo, com o Código Penal Brasileiro, Código de Processo Penal, Código Penal Militar, Código de Processo Penal Militar, conforme ensina Paulo Tadeu Rodrigues Rosa, em sua obra Direito Administrativo Militar – Teoria e Prática, ao cuidar do tema Inconstitucionalidade dos Regulamentos Disciplinares Militares. Após o advento da Constituição Federal de 1988, os regulamentos disciplinares somente podem ser modificados por meio de lei.

Os Estados de São Paulo, Minas Gerais, Ceará e Pernambuco, cientes das disposições estabelecidas pela Constituição Federal de 1988, instituíram os seus novos regulamentos por meio de lei proveniente da Assembléia Legislativa, evitando, desta forma, ualquer tipo de questionamento perante o Poder Judiciário quanto à constitucionalidade das normas administrativa.

No caso, em especial, do Estado de São Paulo, cuja a Polícia Militar conta atualmente com aproximadamente 100.000 (cem) mil integrantes, o maior contingente policial do país, o regulamento disciplinar foi instituído por meio de lei complementar, substituindo o antigo regulamento disciplinar que havia sido instituído por meio de decreto durante o governo do então presidente Getúlio Vagas.

Percebe-se desta forma que aqueles que não acreditarem nas disposições estabelecidas na CF/88 ficarão sujeitos a uma decisão do Supremo Tribunal Federal, no exercício de suas funções constitucionais - controle concentrado de constitucionalidade, reconhecendo, assim se espera, que os regulamentos disciplinares militares instituídos por meio de decreto proveniente do Poder Executivo, estadual ou federal, após o advento da Constituição Federal de 1988, serão declarados inconstitucionais.

Com base nas disposições que foram apresentadas, chega-se à conclusão que as sanções disciplinares militares podem e devem ser severas sempre que forem necessárias para a manutenção da hierarquia e da disciplina, levando-se em consideração a natureza, a amplitude, e a gravidade da transgressão disciplinar militar praticada pelo infrator, integrantes de uma corporação militar estadual ou federal. Caso seja necessário, os regulamentos disciplinares podem até mesmo estabelecer as chamadas prisões disciplinares ou mesmo as prisões cautelares, que já existem e há muito na legislação processual penal comum ou processual penal militar.

A única questão que deve ser observada é que qualquer sanção disciplinar ou procedimento administrativo disciplinar militar deve estar previsto em lei. Na década de 40, século XX, ou mesmo na década de 60, do mesmo século, as disposições disciplinares, bem como outras disposições podiam ser estabelecidas por meio de decreto, o que posteriormente não foi mais admitido. Atualmente, esta é realidade do processo administrativo disciplinar militar.

Os integrantes das Corporações Militares tem como missão fundamental o cumprimento da lei, a preservação do Estado Democrático de Direito, e das instituições, e é por isso que devem agir segundo a lei e, sempre que necessário para a manutenção da hierarquia e da disciplina, pilares das Instituições Militares desde a antiguidade, punidos, sancionados, em conformidade com a lei. Como diziam os romanos, dura lex sed lex, dura é a lei, mas é a lei. No sistema brasileiro, a fonte primária do direito é a lei, e todos devem a ela respeito e obediência, caso contrário o Estado de Direito fica sujeito ao que foi denominado por Émile Durkheim de anomia das leis.

3. Considerações finais

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu novos princípios e paradigmas que devem ser observados pelos operadores do direito, que tem como compromisso a manutenção do Estado de Direito. Os princípios constitucionais se aplicam ao Direito Administrativo Militar e Disciplinar Militar que se destina aos integrantes das forças armadas e forças militares estaduais.

As normas administrativas precisam e devem se adaptar às novas disposições constitucionais sob pena de serem declaradas inconstitucionais, como já se pretendeu em relação ao Regulamento Disciplinar do Exército, por meio de uma ação declaratória de inconstitucionalidade que foi interposta pelo Procurador Geral da República, mas que não teve o seu mérito apreciado pelo Supremo Tribunal Federal.

Os regulamentos disciplinares que foram instituídos por meio de decreto do Poder Executivo foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988 como leis. Em razão disso, a edição de novos regulamentos somente poderá ser feita por meio de lei proveniente do Poder Legislativo, Estadual ou Federal.

Nesse sentido, com base no texto constitucional, pode-se afirmar que a natureza jurídica dos regulamentos disciplinares é de lei proveniente do Poder Legislativo e não de decreto expedido pelo Poder Executivo, afastando desta forma entendimentos pro-administração como aqueles defendidos por parte da doutrina, que não levou em consideração as disposições constitucionais estabelecidas pelo legislador constituinte de 1988.

A hierarquia e a disciplina e, atualmente, a ética, são e sempre continuarão sendo os pilares das instituições militares, onde todos os infratores devem ser punidos e, quando necessário, até mesmo com rigor, sem qualquer distinção, do soldado ao general, almirante ou brigadeiro, até mesmo com a perda do posto, patente, graduação, e ainda dos vencimentos quando necessário, mas sempre em conformidade com a lei, que é a base do Estado de Direito.

No atual ordenamento jurídico brasileiro, pós 1988, os regulamentos disciplinares militares somente podem ser instituídos por meio de lei proveniente do Poder Legislativo. Os regulamentos anteriores foram recepcionados como lei e, portanto, somente podem ser alterados por meio de lei, assim como ocorre com o Código Penal Brasileiro, o Código Penal Militar, entre outros diplomas legais.

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