Aplicação do princípio da legalidade no Regulamento Disciplinar do Exército Brasileiro – Decreto Federal n º 4.346 de 26 de agosto de 2002.

1. Introdução

A liberdade é um direito fundamental do cidadão brasileiro, nato ou naturalizado, civil ou militar, que somente pode ser cerceada por meio de uma decisão judicial proveniente de autoridade judiciária competente, princípio do juiz natural, ou em caso de prisão em flagrante na forma do disposto no Código de Processo Penal e Código de Processo Penal Militar.

No Estado de Direito, que tem como o fundamento a lei, que deve ser cumprida e observada por todos, a liberdade é a regra e a prisão a exceção que somente deve ser aplicada nas infrações médias e graves, ou no caso de crimes considerados hediondos em atendimento ao enunciado da Lei 8072/90, que não se aplica à Justiça Militar.

A Constituição Federal de 1988 que foi promulgada pelo Congresso Constituinte de 1988 ao enumerar os direitos e garantias individuais asseguradas aos brasileiros e estrangeiros residentes no país não fez qualquer distinção entre o cidadão civil ou militar. Segundo a norma constitucional ninguém perderá ou seus bens ou a sua liberdade sem que seja observado o devido processo legal, com todas as garantias decorrentes deste princípio, como a ampla e o contraditório.

O militar é o responsável pela preservação da integridade física e patrimonial dos administrados e da soberania do país. O cumprimento desta missão exige sacrifícios, e a observância de regras especiais, que tem como fundamento a hierarquia e a disciplina, que são observados pelas Corporações Militares.

A realização de missões especiais não retira do militar o status de cidadão, e não autoriza que a sua liberdade seja cerceada sem a observância dos preceitos estabelecidos em lei. O militar tem inclusive o direito de interpor ação constitucional de habeas corpus com fundamento no 2 º, do art. 5 º, da Constituição Federal, em sede de transgressão disciplinar militar, tendo em vista que a República Federativa do Brasil por meio de decreto legislativo e decreto executivo subscreveu a Convenção Americana de Direitos que não faz qualquer restrição nesse sentido.

A prisão preventiva, a prisão temporária, a prisão decorrente de pronúncia, nos caso dos crimes dolosos contra a vida, somente poderá ser decretada por ato de autoridade judiciária competente. No caso dos militares, a autoridade administrativa poderá decretar a sua prisão, mas este ato requer o preenchimento das formalidades estabelecidas em lei, sob pena de abuso punível em lei especial.

2. Espécies de militares

Segundo Antonio Houaiss, entende-se por militar o que é relativo a guerra, a soldado e Exército, relativo às forças armadas(Marinha, Exército e Aeronáutica), à sua organização, às suas atividades. O art. 22 do Código Penal Militar, Decreto-lei n º 1001, 21 de outubro de 1969, preceitua que, “É considerada militar, para efeito da aplicação deste código, qualquer pessoa que, em tempo de paz ou de guerra, seja incorporada às forças armadas, para nelas servir em posto, graduação, ou sujeição à disciplina militar”.

Antes do advento da Constituição Federal de 1988, entendia-se por militar apenas os integrantes das forças armadas, sendo que os integrantes das forças auxiliares, polícias militares e corpos de bombeiros militares, possuíam apenas o status de militares.

As Emendas Constitucionais nº 3/93 e nº 18/98 alteram o art. 42, da Constituição Federal, que passou a ter a seguinte redação, “Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”. Com base neste dispositivo, pode-se afirmar que no Brasil existem duas espécies de militares, os militares federais que integram às forças armadas, e os militares estaduais que integram às forças auxiliares.

Ao comentar o art. 22 do Código Penal Militar, Jorge César de Assis faz a seguinte observação, “Igualmente, revogado este dispositivo. O conceito de Militar, hoje é constitucional, tendo sido previsto no art. 42 da Magna Carta, de 1988. Servidor Público Militar é o gênero, que apresenta duas espécies”.

Com base nos preceitos constitucionais, deve-se observar que os militares federais são os responsáveis pela preservação da soberania nacional, enquanto que os militares estaduais são responsáveis pela preservação da integridade física e patrimonial dos administrados.

Em atendimento ao princípio da legalidade que se aplica ao direito administrativo militar, os militares federais devem ser regidos por regulamentos disciplinares editados pelo Congresso Nacional e os militares estaduais devem ser regidos por regulamentos disciplinares editados pelas Assembléias Legislativas Estaduais.

O Estado de São Paulo por meio da Lei Complementar n º 893 de 09 de março de 2001 e o Estado de Minas Gerais por meio da Lei n º 14.310 de 19 de junho de 2002, deram cumprimento ao disposto no art. 5 º, inciso LXI, da Constituição Federal. O exemplo dos Estados-membros mencionados deve ser seguido pelos demais integrantes da Federação para se evitar uma argüição de inconstitucionalidade conforme demonstrado pela doutrina com fundamento nos princípios constitucionais que se aplicam à espécie.

3. Transgressão disciplinar

A transgressão disciplinar militar se distingue do crime militar que tem por objetivo proteger os institutos que são relevantes a vida militar e aos preceitos disciplinares em graus mais elevados, e ainda a defesa do patrimônio da administração militar. A transgressão para efeito de estudo e com fundamento no Regulamento Disciplinar da Marinha pode ser comparada a uma contravenção, uma vez que se refere exclusivamente aos preceitos de hierarquia e disciplina, obrigações e deveres militares, desde que estes não venham a constituir um crime.

Segundo o Regulamento Disciplinar da Marinha, Decreto n º 88.545, de 26 de julho de 1983, art 6.º, “Contravenção Disciplinar é toda ação ou omissão contrária às obrigações ou aos deveres militares estabelecidos nas leis, nos regulamentos, nas normas e nas disposições em vigor que fundamentam a Organização Militar, desde que não incidindo no que é capitulado pelo Código Penal Militar como crime”.

O Decreto Federal n º 4.346 de 26 de agosto de 2002, que estabeleceu o novo regulamento disciplinar do Exército, revogando o Decreto Federal n º 90.608, de 4 de dezembro de 1984, definiu no art. 14, a transgressão disciplinar. Segundo a norma mencionada, “Transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe”.

A leitura dos preceitos estabelecidos nos Regulamentos Militares evidencia que as transgressões disciplinares possuem um caráter genérico, o que fere o princípio da legalidade, conforme observa a doutrina , que se aplica tanto ao Direito Penal como ao Direito Administrativo, civil ou militar, uma vez que o art. 5º, da Constituição Federal ao estabelecer os direitos e garantias fundamentais do cidadão não fez qualquer diferença entre brasileiros natos ou naturalizados, civis ou militares.

O novo regulamento Disciplinar do Exército pela primeira vez no art. 6.º definiu o significado das expressões honra pessoal, pundonor militar e decoro da classe que na maioria das vezes não é definida. O cuidado apresentado não afasta a amplitude do conceito de transgressão disciplinar militar que pode sujeitar o militar a detenção disciplinar, prisão disciplinar ou mesmo o licenciamento e a exclusão a bem da disciplina, conforme o art. 24 do RDE editado em 2002.

4. Princípio da legalidade na transgressão disciplinar militar

O devido processo legal é uma garantia assegurada a todos os militares em processo judicial ou administrativo, que deve ser observada para que uma pessoa possa ter os seus bens ou a sua liberdade cerceada em atendimento ao art. 5 º, inciso LIV, da Constituição Federal.

A norma disciplinar assim como a norma penal fica sujeita ao princípio da legalidade, em respeito aos princípios que foram estabelecidos na Carta de 1988, que tem por objetivo permitir o exercício da ampla defesa e do contraditório, na busca de um processo que tenha como fundamento a efetiva aplicação da justiça.

A transgressão militar pode levar ao cerceamento da liberdade, que é um bem fundamental do cidadão, civil ou militar, ou mesmo a perda do posto ou da patente. Nesse sentido, as faltas disciplinares devem estar previamente previstas para que o infrator tenha conhecimento dos fatos que podem levá-lo a um julgamento perante a autoridade administrativa militar.

A defesa da legalidade não significa a busca da impunidade ou mesmo a quebra da hierarquia e da disciplina. A observância dos princípios constitucionais não impede e nunca impedirá a punição do militar infrator, que deve inclusive comprovada a sua culpabilidade ser afastado de suas funções ou se for o caso perder a sua patente ou graduação.

No processo-crime militar, as garantais constitucionais são observadas e nem por isso os acusados são em regra absolvidos. Segundo Octavio Augusto Simon de Souza, juiz do Tribunal Militar do Estado do Rio Grande do Sul, “O índice de condenações ou confirmação de condenações no Tribunal Militar estadual do Rio Grande do Sul é, em média, de 80% (considerado o período de 1987 a 200), embora, em primeiro grau, não seja assim, até porque a Lei n º 9.099/95 facilitou a situação processual dos acusados na época em que vigorou na Justiça Militar, por decisão do S.T.F”.

Portanto, o princípio da legalidade tem efetiva aplicação nas transgressões disciplinares militares, contrariando alguns entendimentos segundo os quais a administração pública, civil ou militar, possui poderes para cuidar da sua organização e pessoal. Deve-se observar, que o art. 37, caput, estabeleceu de forma expressa que a administração pública fica sujeita ao princípio da legalidade.

Além disso, contrariando parte da doutrina que afirma que não seria cabível a ação constitucional de habeas corpus , o militar que se sentir ofendido em seu direito de ir e vir poderá propor por meio de advogado ou não pedido de habeas corpus para que a sua liberdade em caso de decisão administrativa ilegal seja preservada em atendimento ao preceito constitucional estabelecido no art. 5 º, inciso LXVIII, e com fundamento na Convenção Americana de Direitos Humanos.

5. Prisão em flagrante e prisão disciplinar

O Estado é o responsável pela preservação da integridade física e patrimonial do cidadão, que é realizada por meio dos órgãos policiais, federais ou estaduais. A prática de um ilícito traz como conseqüência o exercício do jus puniendi pelo Estado-administração que é representado pela propositura de uma ação penal, pública ou privada.

A prisão de um cidadão acusado em tese da prática de um ilícito, crime ou contravenção, somente pode ocorrer em caso de prisão em flagrante ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente.

A prisão cautelar no Estado de Direito é uma exceção que poderá ocorrer mediante a presença de alguns elementos, como o perigo da ordem pública, o regular andamento do processo, preservação da prova testemunhal, que exigem uma atitude por parte do Estado-administração.

A legislação processual penal prevê as seguintes espécies de prisões cautelares: prisão preventiva; prisão temporária, prisão decorrente de sentença pronúncia, que permitem o cerceamento da liberdade de forma preventiva, como forma de se evitar a prática de novos ilícitos, que possam colocar em perigo a integridade física e patrimonial do cidadão.

A prisão administrativa na área militar pode ocorrer em decorrência de uma condenação mediante um processo administrativo onde seja assegurada a ampla defesa e o contraditório sob pena de nulidade do ato administrativo praticado pela autoridade administrativa militar.

A contravenção disciplinar militar deve estar previamente estabelecida em lei em atendimento ao princípio da legalidade, sob pena de nulidade do ato administrativo que impõe ao militar o cerceamento da sua liberdade, que no Estatuto Disciplinar da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais foi afastada.

6. Inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Exército

O art. 5 º, inciso LXI, da CF, estabeleceu que o militar, federal ou estadual, somente poderá Ter a sua liberdade cerceada excetuados os casos de prisão em flagrante e ordem escritas e fundamenta de autoridade judiciária competente, quando se tratar de crime ou transgressão disciplinar definidos em lei.

A palavra lei deve ser entendida como a norma proveniente do Poder Legislativo no exercício de sua função típica, qual seja, a elaboração de normas destinadas a reger o comportamento das pessoas que vivem em um determinado território. No caso da Federação, as leis podem ser provenientes da Câmara de Vereadores, Assembléia Legislativa dos Estados-membros, ou do Congresso Nacional, Câmara dos Deputados e Senado Federal.

Os decretos expedidos pelo poder Executivo, federal, estadual ou municipal, e as medidas provisórias, que apenas possuem força de lei enquanto não forem submetidas a apreciação do legislativo, não são leis em seus aspecto, e não podem possuir o mesmo status das normas provenientes do legislativo no exercício de suas funções e competência.

No Brasil, os crimes somente podem ser estabelecidos por meio de lei proveniente do Congresso Nacional no exercício de suas atribuições. Não se admite crimes definidos por medidas provisórias ou decretos sob pena de inconstitucionalidade a ser reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. O Código Penal é um decreto-lei, assim como o Código Penal Militar, mas todas as alterações que ocorreram nestes diplomas no decorrer dos anos foram estabelecidas por Leis provenientes do Congresso Nacional.

As transgressões disciplinares antes de 1988 poderiam ser estabelecidas por meio de Decretos provenientes do Executivo Federal ou Estadual. Os regulamentos disciplinares foram recepcionados pela Carta de 1988 como leis. Nesse sentido, qualquer alteração nos regulamentos anteriores a 1988 somente pode ocorrer por meio de lei proveniente do Poder Legislativo.

Segundo a doutrina, “A inconstitucionalidade dos regulamentos disciplinares editados com fundamento em decretos foi reconhecida com base nos ensinamentos constantes no texto Regulamento disciplinar militar e a suas inconstitucionalidades”. Esse entendimento é compartilhado por Márcio Luís Chila Freyesleben segundo o qual, “Os Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas e das Forças Auxiliares tinham, por obra do ordenamento então vigente, força de lei e, ao serem recepcionados pela nova ordem constitucional, sofreram o efeito da novação, para receberem o novo fundamento de validade. Hoje, as transgressões disciplinares devem ser regulamentadas por lei ordinária (art. 5 º, LXI, CF/88) e, portanto, os Regulamentos Disciplinares passaram a ter natureza de lei ordinária, sendo absolutamente correto asseverar que somente poderão ser alterados, modificados ou revogados por lei ordinária, pois é esta a sua natureza”.

Os Estados de São Paulo e Minas Gerais seguindo a regra constitucional estabeleceram seus novos regulamentos por meio de lei, o que deve ser observados pelos demais Estados-membros da Federação, sob pena dos novos regulamentos serem questionados junto ao Poder Judiciário em atendimento ao art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.

O regulamento disciplinar do Exército com fundamento na Constituição Federal é inconstitucional, e deve ser editado por meio de lei proveniente do Congresso Nacional. As transgressões disciplinares pós-CF/88 não podem mais ser definidos por meio de decreto, em respeito ao princípio do devido processo legal que se aplica tanto ao processo administrativo como ao processo judicial.

7. Considerações finais

O direito administrativo militar que se aplica aos integrantes das Forças Armadas e Forças Auxiliares fica sujeito aos princípios estabelecidos no art. 37, caput, da Constituição Federal. O administrador público militar ao praticar os atos administrativos deve se ater aos princípios estabelecidos na lei sob pena de nulidade do ato, que poderá inclusive ser revisto pelo Poder Judiciário, que é o guardião dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.

A transgressão disciplinar militar segundo o Regulamento da Marinha pode ser entendida como sendo uma contravenção, o que não afasta a observância do princípio da legalidade, que se aplica aos processos administrativos e judiciais.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu que os acusados em processo judicial ou administrativo possuem as mesmas garantias, que têm como fundamento o princípio da ampla defesa e do contraditório, sendo que a liberdade e os bens de qualquer cidadão civil ou militar somente poderão ser cerceados com a observância do devido processo legal.

No Estado de Direito, a liberdade é a regra e a prisão uma exceção, que somente pode ser limitada com fundamento na lei e nos casos previamente estabelecidos. No caso de uma transgressão disciplinar, o art. 5 º, inciso LXI, da CF, permite que o militar seja preso desde que o crime militar e a transgressão disciplinar estejam previstos em lei.

A expressão lei deve ser entendida como sendo a norma proveniente do Poder Legislativo, Federal ou Estadual, no exercício de sua função típica, para que possa produzir os seus jurídicos e legais efeitos. Os regulamentos disciplinares pós CF/88 não podem mais ser modificados por regulamentos expedidos pelo Poder Executivo, mas apenas e tão somente por lei.

A transgressão disciplinar fica sujeita ao princípio da legalidade com fundamento na Constituição Federal. O militar somente poderá ser preso ou punido nos casos estabelecidos em lei em respeitos as regras estabelecidas no art. 5.º, que estabelece os direitos e garantias assegurados a todos os cidadãos, brasileiros natos ou naturalizados, civis ou militares.

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