A UM CRUCIFIXO – ANTERO DE QUENTAL: Macroanálise
A um crucifixo
Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! E olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!
Por que morreu sem eco, o eco de teus passos,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
Morreste... Ah! Dorme em paz! Não volvas, que descrente
Arrojaras de nova á campa os membros lassos...
Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário...
E agora, como então, viras o mundo exangue,
E ouviras perguntar — de que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —
Antero de Quental
O poema intitulado “A um crucifixo”, do poeta português Antero de Quental, foi escrito em 1862. Nele, o eu - lírico dirige-se a um interlocutor específico; ele direciona sua voz poética ao Cristo materializado em um crucifixo. Pelo título, percebe-se que o poeta volta seu olhar contemplativo à imagem de Jesus pregado no madeiro, ressaltando sua missão salvadora aqui na Terra. Ele está diante de um crucifixo e, nele, visualiza o Messias no momento de suas dores de agonia.
Na primeira estrofe, ocorre o que se chama de "flashback", onde o eu-lírico se volta para o próprio Cristo, numa espécie de resgate do instante de sua crucificação (Paixão de Cristo). A sinfonia das palavras transporta o leitor para o mistério da cruz. Há o regresso até o monte Calvário, sendo testemunhas do sacrifício do Cordeiro para a remissão dos pecados da humanidade. Esse confronto temporal (passado e presente) será necessário para a resolução, posterior, das incertezas que povoam a mente do eu - poético. Ao mesmo tempo em que há um lamento da inutilidade de seu martírio, o Cristo é relembrado como um homem bom, que almejava um ideal: usar a sua morte como exemplo de vida e uma forma de redenção do povo. São descritos os últimos momentos de sua vida e o quanto ele acreditava que sua passagem aqui na terra fosse capaz de preencher o vazio existencial do ser humano.
Na segunda estrofe, ainda num passado presentificado, a voz poética lança mão de um questionamento: “Por que morreu sem eco, o eco de teus passos,/ E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?”. A incerteza quanto à repercussão de sua ação na Terra é resultante da descrença total dos valores mundanos. A grande indagação feita aqui diz respeito à fé, que passou a ser desvinculada da instância mística e centrada na questão ética, manifestada na procura por uma nova ideia sobre o seu sentido. Sendo assim, a fé figura como uma forma de elevação, desprovida do simbolismo religioso, vinculada mais à moral e à ética. Ela passa a ser uma abstração, um conceito a ser pensado, e não um sentimento subjetivo e dogmático do homem. Por esta razão, aconselha-se ao Cristo que não regresse ao mundo como prometera, pois sua morte não teve a repercussão que lhe era almejada. Suas palavras foram abafadas e a mesma terra que tanto necessitava de uma luz, sair da enfermidade, permaneceu doente. É como se a sua morte tivesse causado certa provocação, mas, no fim, tudo continuou igual (é a mesma terra erma, sob o mesmo ermo céu).
É na terceira estrofe que se atribui a culpa ao responsável pela “castração” da divindade do cristo: a própria humanidade. Neste momento, o tempo verbal retorna ao presente, como forma de se analisar a ressonância deste fato nos dias vigentes. E a constatação é clara. Após presenciar a grande prova do amor de Deus para com os homens, ao dar seu filho único para remir os pecados do mundo, a humanidade permaneceu incrédula, contemplando, estática, as marteladas que ela mesma apregoava nos “membros lassos...”. Neste mesmo terceto, nota-se a repetição do adjetivo "mesmo(a)", quatro vezes, que acentua a constatação de que a sociedade não sofreu alteração. A mesmice dessa humanidade incapaz de aprender as lições do Mestre continua imutável.
No último terceto, já frustrado com a “mortificação” da fé humana, seca de vida e vazia de esperança, e descontente com o não cumprimento dos preceitos divinos, Cristo ainda é interrogado: “E ouviras perguntar — de que serviu o sangue/ Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —”. O eu – lírico, numa visão angustiante e desesperada na busca pela verdade, indaga o crucificado a respeito do valor que sua morte teve (ou deixou de ter) para os homens. Esta angústia é fruto da visão que o eu - lírico alimenta ao contemplar o suplício de Cristo. Na verdade, somos nós as urzes do Calvário; eram os nosso pecados de Cristo carregou nos ombros na Via Sacra (a cruz); e, o mais evidente, também nós fomos marcados com os cravos que perpassaram seus membros debilitados; temos as chagas em nosso membros para não esquecermos que, um dia, um homem as tomou em favor da nossa salvação. Com esta pergunta, é encerrado o soneto.
A resposta seria dada por Antero, doze anos depois. Em 1874, o poeta escreve outro soneto, também intitulado “A um crucifixo”, onde reafirma a validade do martírio de Cristo e coloca a humanidade como herdeira do seu trono celeste. Enquanto, no soneto de 1862, lamentava-se a “inutilidade do sacrifício de Cristo”, pondo em dúvida a missão do Salvador, cujo exemplo não foi suficiente para abrandar o caos do mundo e o sofrimento dos seus filhos, neste, verifica-se o erro da conclusão anterior.
A um crucifixo (Doze anos depois)
Não se perdeu teu sangue generoso,
Nem padeceste em vão, quem quer que foste,
Plebeu antigo, que amarrado ao poste
Morreste como vil e faccioso.
.
Desse sangue maldito e ignominioso
Surgiu armada uma invencível hoste...
Paz aos homens e guerra aos deuses! - pôs-te
Em vão sobre um altar o vulgo ocioso...
.
Do pobre que protesta foste a imagem:
Um povo em ti começa, um homem novo:
De ti data essa trágica linhagem.
.
Por isso nós, a Plebe, ao pensar nisto,
Lembraremos, herdeiros desse povo,
Que entre nossos avós se conta Cristo.
Como se não houvesse solução de continuidade, o segundo assim se abre: “Não se perdeu teu sangue generoso,”, visto que não morreu em vão, pois dele “Surgiu armada uma invencível hoste...”. A vinda de Jesus à terra é apresentada com caráter revolucionário. O Mártir, do qual se fala no poema, é a fonte da verdadeira e futura luta plebeia do mundo socialista. É este Cristo humanizado, sangrando, morrendo (para os que não acreditavam) como maldito, atiçando o desprezo, que aparece liberto e lembrado ao morrer pelos que estão à margem: “Lembraremos, herdeiros desse povo,/ Que entre nossos avós se conta Cristo.”. Jesus é chamado de “plebeu antigo”, aludindo à sua origem humilde (filho de carpinteiro e dona de casa), além de expressar o caráter de sua missão terrena, voltada para os pobres. Em se tratando do século XIX, pode-se dizer que há, nesta nomeação (apóstrofe), a identificação da origem do proletariado. A morte do Cristo “como vil e faccioso” é vista pelo olhar do homem antigo, que enxergava, nele, um revolucionário e agitador da classe oprimida, contra a ordem política e religiosa da época cristã.
Esse povo evocado é bem digno descendente do Cristo que morreu pregado na cruz. Porém, não se trata de uma plebe passiva, amedrontada e incapaz de reação perante a desgraça. Aqueles que o poeta considera herdeiros do “sangue generoso” de Jesus são os que lutam: “Do pobre que protesta foste a imagem / Um povo em ti começa, um homem novo”. O povo assume a dimensão do herói coletivo, apostolado da pura fé plebeia.
Por fim, a mensagem que transparece do soneto analisado (“A um crucifixo – 1862”) é a recusa por parte do ser humano em não acreditar na verdade. O fato de se viver num mundo tão camuflado por aparências, banalizou a verdade como algo vão, insuficiente para garantir a vida em sociedade e nos meios que dela constituem o cotidiano do homem moderno. Por isso, a desvalorização da verdade e o questionamento de sua ausência pelo poeta. A humanidade conhecia a verdade irrevogável, mas a ignorou, pactuando, ela própria, com o crime efetuado contra aquele que varreu o pecado da face da terra.
"Aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso." (Bertolt Brecht)