POETRIX: o Salto, o Susto e a Semântica

POETRIX: o Salto, o Susto e a Semântica

"...penso no poetrix perfeito como um pequeno projétil

que nos atinge direto num órgão vital" (Sara Fazib)

Há quem veja as artes minimalistas – entre elas, o Poetrix – como artes menores. Como se fosse possível medir o valor de todas as pedras preciosas por seus tamanhos. Um cristal grande vale menos que um pequeno diamante e mesmo dois diamantes de igual tamanho podem ser avaliados diferentemente. Existem poetrix que valem mais que extensos poemas como, também, muitos deles não precisariam terem sido escritos. Dentre os vários elementos que podem aumentar ou diminuir os "quilates" de um poetrix, eu gostaria de falar, neste artigo, sobre três deles: o Salto, o Susto e a Semântica.

A cena é recorrente, o cinema hollywoodiano dela usa e abusa: o herói (ou vilão) está em fuga. Em sua perseguição, o inimigo. Após inúmeras infrutíferas tentativas de escape, surge o obstáculo: um abismo, uma ponte quebrada, o teto de um edifício, uma estrada inacabada. O que fazer? Morrer ou morrer? O protagonista da cena escolhe o risco. “A possibilidade de arriscar é que nos faz homens”, segundo o poeta baiano Damário Dacruz. Salta... para a salvação. O mesmo acontece com alguns poetrix. Por ser um texto breve, isso não quer dizer que ele deva ser lido com brevidade. É preciso querer-se captar as suas nuances, as pequenas particularidades de cada palavra, desde o título e a cada verso. Ele também tem o seu ritmo e intensidade próprios, possibilitados pela livre distribuição das sílabas em cada linha, conquanto não venham a ultrapassar o máximo de trinta sílabas. Existem poetrix que encaminham-se lentamente para o seu final como quem irá desencarnar por morte natural e, de repente, o Salto! Observem como isso foi bem elaborado por Sara Fazib (SP) no poetrix CARA METADE:

melhor par não faria

eu e essa minha falta

de companhia

ou em SONSAS, de Lílian Maial:

Estrelas

não dizem a verdade.

Elas piscam.

e ainda em GRÁVIDA, de Pedro Cardoso (DF):

No corpo da menina

a barriga cresce

como uma boca faminta

O Salto, no poetrix, subverte. O texto dialoga consigo mesmo, opõe-se, contrapõe-se, quase nega-se e, nessa dialética, ressuscita.

LinguaJá, meu mais recente livro de poesias, tem como subtítulo "O Território Inimigo", numa alusão ao nosso idioma, campo minado no qual o escritor tem que saber pisar com artimanhas. Voltemos ao filme no exato momento do salto do nosso (anti)herói. Stop! Imagem congelada. Agora solte, devagar, como num filme de John Woo. O leitor/telespectador, nesse curto espaço de tempo, viverá a brevidade da expectativa, mesmo sabendo, de antemão, o que acontecerá: ou ele cairá são e salvo, do outro lado, ou se espatifará. Mas, se não acontecer nem uma coisa nem outra? Se, digamos, o personagem simplesmente desaparecer no ar, teletransportado por alguma Ciência ou Magia? Eis o Susto. Nem, sempre, porém, quem deseja assustar atinge o seu intento. Sempre existem aqueles que “já viram de tudo” e “não se impressionam com mais nada”. Como os koans zenbudistas, que para alguns podem ser instrumentos de iluminação e para outros meras historietas sem graça, a intensidade do Susto depende muito mais de quem o recebe do que de quem o proporciona. Com o Susto, o poetrixta pretende surpreender, ainda que nem sempre o consiga. Um dois poetrix que mais me “assustaram” chama-se HEROESIA, também de Sara Fazib (que transformou-se num belíssimo grafitrix ilustrado pela poetisa Silvana Guimarães, disponível em www.poetrix.org):

de joelhos, reverente

provo a Tua presença

sarça ardente

Outro bom exemplo é NOVA EDIÇÃO, de Andréa Abdala:

conto da carochinha,

mulher de verdade

não goza de mentirinha

Foi também o que intentei fazer com o poetrix PESSOIX, inspirado em poemas de Fernando Pessoa e Ferreira Gullar:

um terço de mim, delira

um terço de mim, pondera

outro terço, ah!, quem dera

Eu estava utilizando o exemplo da fuga no cinema hollywoodiano, onde uma fuga é apenas uma fuga, não há nada por trás dela, seja a pé, de moto, carro ou caminhão. Mas não podemos dizer o mesmo quando tratamos do cinema europeu, onde tudo pode não ser simplesmente o que aparenta. Nele, uma cena de fuga pode estar metaforicamente simbolizando uma perda ou busca de identidade, uma inadequação social, um estado psicológico... ou patológico. Uma fuga, como a outra, mas dentro de um novo contexto idealizado. O poeta Gilberto Gil, na letra da música METÁFORA diz que “uma lata existe para conter algo, mas quando o poeta diz ‘lata’, pode estar querendo dizer o incontível.” Quando o poetrixta explora inteligentemente a riqueza semântica de algumas palavras, seja metaforizando, fazendo trocadilhos ou utilizando figuras de linguagem, o poetrix vai muito além das três linhas, ganhando uma vastidão de possibilidades. Quando Djalma Filho (BA), em LUSCO-FUSCO diz:

deitada,

quase apagada,

a noite armadilha

ele está fazendo isso. A palavra “armadilha” consegue deixar de ser um substantivo para tornar-se verbo, como suas sinônimas tocaia/tocaiar e emboscada/emboscar, permitindo outras (re)leituras do poetrix. A mesma coisa ocorre com estes dois poetrix meus, onde as palavras “mama”, “filho da mãe”, “presente” e “torres”, “rock”, “xeques”, “xadrez” permitem várias interpretações:

MAMA

aninho-me em teu ventre

filho da mãe

roubo-te o presente

TERRORISMO

as duas torres caem

nenhum rock, réquiem

xeques no xadrez

Poderão objetar: “sim, Goulart, isto tudo é muito singular; qualquer texto literário cresce quando conta com esses elementos” e eu “vos direi, no entanto”: para o poetrix, a menor (em tamanho) das linguagens poéticas, “crescer” é fundamental!

Machado de Assis, na apresentação do seu livro VÁRIAS HISTÓRIAS diz, com relação aos contos:

"O tamanho não é o que faz mal a este gênero de histórias, é naturalmente a qualidade; mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos."

Isto é válido para o poetrix em relação à poesia, assim como o inverso também é verdadeiro: se tais elementos – Susto, Salto e Semântica – são importantes no texto longo, mas ainda o são no poetrix, onde não há tempo ou espaço para corrigir erros.

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(meus agradecimentos aos cúmplices: Ana Cristina Carvalho e Sara Fazib pelas "dicas" que contribuíram para a elaboração deste texto; a Damário Dacruz pela autorização para inclusão da sua citação e a Machado de Assis, por ser tão genial!)