Santos e mártires

Diariamente, fosse em veículos pagos em prestações a perder de vista, fosse humilhando-se dentro daquelas latas de sardinha humanas, fosse em velhas bicicletas ou a pé, milhares de pessoas passavam por aquela esquina. A maioria já não era capaz de enxergar os frequentadores daquela esquina, pois treinaram por muito tempo seus olhos para enxergar apenas o que queriam ver. Alguns outros lançavam aos frequentadores daquela esquina olhares breves e carregados pela repulsa ou pelo sentimento de superioridade. Todavia, ninguém menos que o próprio Saint-Exupery disse certa vez: "(...) só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram essa verdade (...)."

Fato era que qualquer observador apressado veria naquela esquina apenas bêbados e desocupados, maltrapilhos e fracassados. Contudo, aqueles homens modestamente vestidos e sem empregos formais, ébrios sempre que podiam, eram muito mais do que os apressados olhos humanos podiam ver. Aqueles homens eram a última esperança deste mundo, eram a terceira via, a materialização da pureza e do desprendimento, o retorno aos ensinamentos cristãos, a prova viva de que a libertação das posses terrenas é possível. Santos, eis uma definição adequada àqueles homens.

Diariamente, sem prévia combinação, aqueles valorosos homens se reuniam naquela esquina. Logo pela manhã, na hora das refeições, por toda a tarde ou noite afora, sempre era possível vê-los naquela esquina. Para eles esta última era muito mais do que uma esquina, era muito mais do que um passeio elevado próximo a uma casa em ruínas. Para aqueles nobres homens a Esquina convertia-se num santuário onde buscavam a purificação, era o templo onde meditavam, era o oráculo onde clamavam por sabedoria, era a catedral onde oravam aos céus pela salvação de todos.

Mais do que a cachaça que compartilhavam o que motivava aqueles homens a se encontrarem na Esquina era o altruísmo e o mais sincero desejo de fazer do mundo um lugar melhor. Reunidos ali eles eram mais fortes e juntos davam seu bom exemplo à sociedade. Diariamente se reuniam na Esquina e mostravam aos apressados transeuntes que a vida poderia ser vivida sem amarras e sem pressa.

Na verdade os homens da Esquina eram monges modernos que se esforçavam por revelar à sociedade que o desprendimento e o cultivo das virtudes era possível. Trilharam um caminho tortuoso e recheado de sacrifícios e reflexões. Mas, saíram renovados e livres dos vícios que permeiam a sociedade. Portanto, há muito aqueles nobres senhores se livraram da ganância e da inveja.

Aqueles virtuosos homens se contentavam com o mínimo necessário a sua sobrevivência. Embora ocasionalmente apreciassem um pouco de futebol, não se angustiavam discutindo política ou religião. Não se escravizavam oito horas por dia e trezentos dias por ano para comprarem veículos e casas que lhes consumiriam tempo e saúde. As facilidades de crédito e as prestações a perder de vista não lhes seduziam. Com suas roupas surradas e estilo de vida frugal tentavam demonstrar que a vida vai além das posses. Em coro gritavam à sociedade que smartphones, tênis caros, trocar de veículo periodicamente, ter empregos, contas no facebook e whatsapp, família ou frequentar faculdades eram absolutamente supérfluos.

No entanto, por mais que os valorosos homens da Esquina se esforçassem, as pessoas não percebiam que eles queriam lhes mostrar um caminho de luz. Do alto de suas parcas realizações mundanas, presas a mil correntes invisíveis, as pessoas desprezavam os Santos da Esquina. Contudo, a sociedade que os rejeitava era a mesma que eles tentavam curar. Portanto, também mártires, pois lidavam a todo momento com a chacota e a pretensa superioridade, a indiferença e o desprezo da sociedade.

Santos e mártires que são, os nobres homens da Esquina não desanimam, persistem e permanecem na Esquina. Fazem-no, pois altruístas e puros que são, mantêm-se convictos de que salvarão a sociedade.

Uma homenagem ao camarada John Steinbeck.

Guilherme c
Enviado por Guilherme c em 16/03/2015
Reeditado em 07/07/2016
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