Lições caninas - Cena I

Naquela manhã, como de costume, o rapaz acordara sonolento e pouco disposto a ir ao trabalho. Em outro canto daquela mesma cidade, aquele início de manhã encontrara o cachorro há muito desperto.

Fazendo jus a sua ascendência de nobres lobos das padrarias distantes, o cachorro dormira pouco à noite. Longe disto, perdera-se por horas a fio contemplando a lua, vagando sem destino por ruas escuras ou correndo atrás dos poucos motoclistas que passavam por ele. O rapaz, a seu turno, dormira tarde, pois se ocupara bastante com afazeres do trabalho.

Enquanto o rapaz lutava contra o sono e reunia todas as suas forças para se levantar da cama, em outro ponto da cidade, o cachorro agora perdia-se em reflexões. Comodamente deitado próximo a um ponto de ônibus o cachorro, mergulhado em reflexões, tinha seu pêlo tingido de um dourado vívido pelos primeiros raios de sol. O rapaz, em seu quarto escuro e aconchegante cogitava, como sempre fazia manhã após manhã, se iria ou não ao trabalho naquele dia.

Naquele mesmo instante, o cachorro, com o olhar fixo no vazio, rememorava suas antigas vidas. Lembrou-se de cada detalhe de milênios anteriores quando era um pobre felá que ajudava a erguer as Pirâmides de Gizé. Lembrou-se de quando era um vigoroso e imponente guerreiro viking e de suas aventuras, batalhas e bebedeiras naquela vida. Recordou-se dos anos monótonos e sombrios de sua vida perdida no claustro de um mosteiro do interior da Europa medieval. Recordou-se ainda dos cultos e festivais de que participava em homenagem ao deus-sol no alto das montanhas Incas.

Com o olhar perdido, o cachorro se lembrou de suas muitas vidas anteriores. Amargurou-se ao se lembrar de sua última passagem sobre este mundo. Nesta última fora um empresário, sempre vestido com terno e gravata, sempre ávido pelo lucro, sempre tratando pessoas como máquinas... Ironicamente, não pôde desfrutar das riquezas terrenas que tão sedentamente acumulou. Após tantas reflexões concluiu, sem dúvida acertadamente, que estava muito melhor sendo cachorro.

Após o fim das reflexões do cachorro, o rapaz, vencido pela necessidade de trabalhar, acabava de sair de casa. No trajeto para o trabalho, o rapaz começava, assim como o cachorro, a ponderar sobre o sentido da vida e o porquê das frituras e molhos especiais o fascinarem tanto. O rapaz se perguntava por que tinha um emprego que detestava para adquirir coisas que, na verdade, não precisava. Perguntava-se, se o caminho em que se empenhava, de estudar e buscar um bom salário, realmente valiam a pena. Acima de tudo, perguntava-se também por que as frituras eram tão deliciosas!!!

O cachorro, que há pouco emergira da profundidade de suas reflexões, decidira se levantar e dar umas voltas. Lentamente, como era seu hábito, o cachorro se levantou, se esticou e bocejou. Alheio à pressa das pessoas a seu redor, o cachorro caminhou por algumas ruas. Embora tivesse alguma fome, o cachorro não tinha qualquer pretensão com aquela pequena caminhada matinal. Há muito decidira viver um dia de cada vez e a não permitir que a ambição o envenessasse com pretensões desnecessárias.

O rapaz, no entanto, não tinha a mesma sabedoria do cachorro. A caminho do seu trabalho, o rapaz pesava as renúncias que fazia e ainda faria para atingir seus objetivos. Mal sabia que os sonhos o angustiavam, mal sabia que de tanto olhar para o futuro, pouco vivia o presente e que os objetos e posições sociais que ele possuia e possuiria, acabariam por possuí-lo. O rapaz ainda não sabia, mas era um escravo.

O cachorro, em muitas vidas passadas, já fora como o imberbe rapaz. Agora, contudo, dedicava-se intensamente ao ócio e aos pequenos prazeres diários. Comovida pelas pequenas ambições e pela grande sabedoria daquele cachorro, a Fortuna decidira premiá-lo. Na curva de uma esquina qualquer, eis que o poderoso faro do cachorro lhe indicou a proximidade de bacon, queijo, ovo frito, hambúrguer, calabresa e muito molho especial. Agraciado pela Fortuna e dispondo de seu incrível faro, o humilde cachorro pouco teve que procurar. Logo ali, pouco a sua frente o aguardava um super-delicioso sanduíche.

Naquela mesma curva qualquer estava o rapaz, que observara o quanto os olhos do cachorro brilharam ao encontrar o sanduíche. A cabeça do rapaz, que antes projetava para si um futuro brilhante, foi invadida pela dúvida e pela vergonha. Sem o imaginar, o sábio cachorro ensinara àquele rapaz a maior de todas as lições: a felicidade não reside em grandes pretensões ou grandes aquisições, mas sim no desprendimento das coisas materiais. A partir daquele instante então, o rapaz decidiu mudar gradualmente sua vida. Hoje o rapaz almeja atingir a santidade e o desprendimento daquele sábio cachorro.

Guilherme c
Enviado por Guilherme c em 05/03/2015
Reeditado em 19/04/2015
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