Promessas não cumpridas e a guerrilha diária

Em muitos aspectos se podia afirmar que aquele não era um rapaz comum. Seu desinteresse para com a tecnologia representava uma de suas peculiaridades. Ele pouco se importava em trocar periodicamente de celular, aliás, ele sequer se preocupava em possuir um destes aparelhos. Prova disto eram os longos períodos em que ficava sem possuir um celular ou o lastimável estado de seu aparelho atual. Certa vez, ao contemplar aquele aparelho o rapaz imergiu em reflexões.

Ele estudara que em um em um passado não muito distante, os homens acreditaram que poderiam tomar o céu de assalto se assim o desejassem. Aqueles eram homens diferentes, eram os primeiros brotos de uma nova era. Vislumbraram tempos de fartura e de fraternidade, prometeram a erradicação do cansaço, da doença e de toda a fome. O horizonte que miravam era resplandecente. O fundo dos oceanos e suas criaturas maravilhosas seriam enfim conhecidos. Os céus seriam dominados. As doenças seriam erradicadas e toda dúvida logo deixaria de existir. Seria possível se comunicar com qualquer pessoa em qualquer ponto do globo. Nada estaria interditado àqueles novos homens e à sua descendência. A aurora daqueles tempos transbordava otimismo.

Aqueles novos homens confrontaram suas tradições, seus dogmas, seu obscurantismo religioso. Libertaram-se das crenças antigas, já não visitavam as igrejas com a mesma frequência, esqueceram-se dos velhos deuses da terra, do sol, das águas... Mas os antigos templos e altares não caíram em desuso, pois não ficaram vazios por muito tempo. A seus antigos altares aqueles homens alçaram novos deuses, eram eles: a Razão e a Ciência, acompanhados e a serviço do maior de todos os novos deuses: o Dinheiro.

Iluminados pela Razão e pela Ciência e contando agora com as fartas benesses do Dinheiro os novos homens passaram a materializar suas promessas. Respiramos grande parte delas como resultado de seus valentes esforços. Tantas doenças foram erradicadas, os campos produzem cada vez mais e agora se esboça a conquista do espaço! Contudo, tantas foram as promessas não cumpridas!

As máquinas que deveriam nos libertar trouxeram-nos fome, desemprego, miséria e jornadas e isso extenuantes para os poucos que conseguem trabalho. Os campos, que embora produzam para o sustento de um planeta e meio, contemplam o sinistro baile da Fome. Dentre aquelas promessas não cumpridas, o rapaz ponderou sobre uma com maior atenção. Refletiu que ironicamente a tecnologia criada para aproximar as pessoas acabou por afastá-las cada vez mais.

Eis quem sabe o porquê do rapaz possuir aquele celular em estado lastimável e sem acesso à internet. Era a resistência e a afronta à sociedade que o motivavam. Perplexas, as pessoas não conseguiam entender o que o motivava a possuir aquele aparelho. Muitos tentavam dissuadi-lo a se desfazer daquele celular. Algumas prometiam lhe dar velhos aparelhos que possuíam em casa, enquanto outras afirmavam que poderiam lhe vender um bom celular a um preço camarada.

Talvez ele gostasse de observar o quão estarrecidas as pessoas ficavam ao vê-lo manusear aquele aparelho em frangalhos. Talvez ele verdadeiramente não se importasse em possuir um celular obsoleto e quebrado, talvez ele não tivesse uma grana para adquirir outro. Talvez ainda, a súmula destas razões explicasse porque ele possuía aquele celular em frangalhos.

O fato era, que havia também razões de cunho filosófico por detrás de sua frugalidade tecnológica. O medo orientava sua ojeriza à tecnologia e aos modernos smarthphones. Contudo, não era o medo puro e simples do touchscreen, por si só bastante assustador. Não era apenas a inabilidade para com as novas novidades que brotavam a cada instante. Mais do que isso, pois era o medo de se escravizar à algo com o qual ele sempre viveu sem conhecer.

Por detrás de todo lançamento reluzente ele percebia o intuito da indústria capitalista de se criar necessidades. Uma vez se tendo contato com as mesmas, nunca mais se poderia viver sem elas. Aterrorizava-o a possibilidade de se deixar escravizar pelos smathphones. Aterrorizava-o a possibilidade de se distanciar mais ainda das pessoas devido à tecnologia criada para aproximá-las. Angustiava-lhe a perspectiva de manter diálogos sem contatos visuais, uma vez que os olhos estariam para sempre presos às telas dos preciosos celulares. Apreensivo, ele observava as pessoas em mesas de bares, por excelência espaços de socialização, imersas em seus celulares.

Houve uma ocasião* em que o rapaz observou longamente um casal em um bar. Ao chegarem, antes de se sentarem, ambos sacaram desesperadamente de seus modernos celulares. Por todo o tempo em que lá permaneceram trocaram não mais do que meia dúzia de breves palavras desacompanhadas de olhares. Seria tudo aquilo o prenúncio do esfacelamento das relações humanas?

Portanto, o celular em frangalhos era a tábua de salvação do rapaz, era sua estranha forma de preservar sua lucidez em meio à silenciosa histeria coletiva. Eram tempos sombrios, ponderou o rapaz.

Guilherme c
Enviado por Guilherme c em 22/04/2015
Reeditado em 29/10/2016
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