Pterodátilos

Destruição. Pode-se dizer que é esse o tema da peça “Pterodátilos”(https://www.youtube.com/watch?v=VUZ6lSXPn3k). A peça trata da destruição em vários sentidos: a destruição da família, num primeiro plano, a destruição da sociedade e, em última instância, a destruição do próprio humano enquanto espécie. Trata-se de uma comédia ácida perpassada por um tipo de humor que evolui ao longo da trama para o total desespero diante do real.

A história gira em torno da degradação das relações em uma família de classe alta que começa a perceber que há um abismo entre seus entes: a filha Ema (vivida por Marco Nanini), uma adolescente histérica que se acha gorda; Tom (Felipe Abib), um jovem pobre, órfão que trabalha de garçom e que acaba se tornando a “empregada” da casa (com direito a uniforme!), por quem Ema se apaixona; O pai, Arthur (também vivido por Marco Nanini), um sujeito que vê sua família fracassar, perde o emprego e passa a peça inteira dizendo que sempre quis ser locutor; A mãe, Grace (Mariana Lima), uma alcoólatra e viciada em remédios que vive a falar sobre futilidades e que praticamente não come por medo de engordar; finalmente, Todd (Álamo Facó) o filho do casal que volta depois de muito tempo pra casa e diz aos pais que é homossexual e tem AIDS.

Essa é a família problemática (talvez mais próxima das nossas do que pensamos) que entra em cena em “Pterodátilos” vagando pelo palco, que se move e se degrada a cada cena, como espectros; como fósseis. O cenário é outro elemento de grande importância na composição da peça. Elaborado por Daniela Thomas, em tons de cinza e negro, o palco possui um mecanismo de movimento o faz atuar como um “balanço” e faz com que os atores ora estejam no alto, ora estejam embaixo (nisso é possível ver um movimento que lembra o conceito de “quiasma”, exposto durante as aulas). O palco começa então a ser destruído lentamente quando Todd, ao retirar uma tábua, acha no fundo um osso e inicia a operação, que dura a peça inteira, de tirar cada tábua do palco, a fim de revelar a que animal pré-histórico pertenceu aquele fóssil.

Como já foi dito, a peça é uma comédia. Porém não é difícil encontrar nela elementos que a caracterizem, ao menos em algum grau, como uma tragédia. A peripécia, por exemplo, que Aristóteles define como uma “alteração das ações, em sentido contrário”, pode ser identificada na mutação que ocorre na família que ao entrar em cena, no início da peça, parece feliz e brincalhona e que irá revelar-se agonizante e desesperada ao longo da ação.

É possível identificar também outro dos “elementos essenciais” da tragédia: o reconhecimento. Tal se dá em uma das cenas finais em que o filho Todd, após descobrir que o fóssil que jaz sob o chão da sala (e após ter destruído o palco para encontrá-lo) é de um pterodátilo, constata que talvez estejamos caminhando para a extinção (do corpo ou do “espírito") como os dinossauros que, não se sabe bem por que, simplesmente sumiram; talvez por causa de um meteoro, talvez pela superpopulação ou talvez por que simplesmente, chegaram à conclusão de que a vida era uma causa perdida e de que, para nossa “estirpe miserável e efêmera”, como nos diz Nietzsche sobre a sabedoria de Sileno, o melhor seria “não ter nascido, não ser, nada ser” (NIETZSCHE, 2005, p.36).

A catástrofe acontece, ao fim da peça, em dois planos. Ema se mata com o revólver que lhe foi dado por seu irmão, Arthur vai embora da casa e corpo de Tom jaz sob o palco (não fica claro se foi morto por Ema ou se foi também um suicídio). Restam mãe e filho, Grace e Todd no palco (vale notar que a relação entre os dois é incestuosa), a família acabou e todos estão sós. Em outro plano, é possível pensar também em uma catástrofe física: o cenário é destruído ao longo da peça e, ao final, só restam escombros. Assim como as almas estão despedaçadas, também o espaço está. Mãe e filho jazem na poeira e na fumaça e, nas ruínas, imóveis, permanecem os ossos do pterodátilo lembrando aos personagens o seu destino inexorável.

Em certo sentido, é possível dizer que os personagens da peça passam “da felicidade ao infortúnio”, porém, a própria felicidade que se apresenta no início da peça já é ela própria artificial e insustentável, pois sustentada sobre mentiras. Quando Aristóteles diz que na tragédia ocorre “a imitação de seres melhores que nós” pensamos, num primeiro momento, que não é possível verificar esse requisito em “Pterodátilos”, porém, um olhar mais cuidadoso nos revela que há sim tal ocorrência na peça. Na tragédia grega, os “seres melhores que nós” eram os nobres, reis, rainhas e semideuses. Como seria possível pensar nos tempos modernos essa “superioridade”? Ora, uma das maneiras mais interessantes de fazer tal analogia é colocar uma família de classe alta, como a peça faz. Assim, segundo o critério que, na prática, determina atualmente a superioridade ou inferioridade das pessoas, ou seja, o dinheiro, podemos dizer que o requisito é atendido pela peça.

Outra maneira de aproximar a peça da concepção de tragédia de Aristóteles é através dos sentimentos que ele desperta, a saber, “terror e compaixão”. A fusão desses sentimentos se dá de tal forma no drama que os vivemos simultaneamente, em vários momentos e em relação a todos os personagens. Cada personagem é o resultado, levados às últimas consequências, dos medos e fraquezas que todos nós temos. Essa identificação leva à compaixão, a intensidade com que os personagens vivem suas misérias leva ao terror.

Os “Pterodátilos” somos nós. É isso o que o drama mostra. Em alguns milhares ou milhões de anos seremos apenas fósseis que se escondem sob assoalhos ou camadas de terra: é esse o destino trágico da família e, por analogia, da humanidade. A mãe, Grace, parece ser a primeira a notar tal fatalidade (como Jocasta, que percebe, primeiramente, a tragédia de seu filho-esposo e dela própria) e tenta salvar-se, ou esquecer-se, no Whiskey, nos antidepressivos e na promiscuidade; em vão. Fica, ao fim da peça, a sensação de que não somos mais que velhos dinossauros que arrastam o esqueleto pelas cidades procurando escapar à inevitável extinção. Parecem então ecoar as palavras de MacBeth:

“A vida é só uma sombra: um mau ator

Que grita e se debate pelo palco,

Depois é esquecido; é uma história

Que conta o idiota, toda som e fúria,

Sem querer dizer nada.”

(SHAKESPEARE, 2010, p.567)

Bibliografia:

ARISTÓTELES. Poética. In: Coleção Pensadores: Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural, 2004.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimimo. Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

SHAKESPEARE, Willian. Hamlet, Rei Lear, Macbeth. Tradução de Barbara Heliodora. São Paulo: Abril, 2010.