O Cuidado

Nos dias de hoje falar sobre o cuidado para determinadas pessoas é correr o risco de ser taxado de esquerdista, pessoa chata, gente alienada ou - no mínimo - boba ou ingênua. Apesar da violência nas palavras dos bípedes humanos, vale dizer que a “sociedade do cuidado” é complexa, dado que para sua existência é obrigatório e necessário o respeito ao outro em sua singularidade, fragilidade e necessidade. Trata-se de relações sociais repletas de virtudes, valores e bondades destinadas às pessoas mais vulneráveis. Leonardo Boff, em seu livro “Saber cuidar: Ética do humano - compaixão pela terra” (Petrópolis: Ed. Vozes, 2002), vai mais longe e diz que a sociedade do cuidado exige um “novo” modo de ser, uma nova “pessoa humana” capaz de se fundar em um campo de sociabilidades e comunidades afetivas do cuidado com a vida. Isso quer dizer que cabe aos seres humanos não somente o cuidado com o outro, mas também com todas as dimensões da vida como nas esferas ecológicas, ambientais, sociais, culturais e políticas. Essa integralidade com o mundo da natureza, em tempos de ódio, torna-se de difícil manejo, ainda mais no pensamento cristão no qual o cuidado se aproxima bastante do amor entendido como ágape.

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No livro sobre os cuidadores, de Helena Hirata, “O cuidado. Teorias e práticas” (São Paulo: Ed. Bomtempo, 2022), a autora se refere a ilusória “sociedade do cuidado”, a qual pouco se aproxima dessa sociabilidade. Ela se refere ao cuidado destinado nas sociedades do século XX e XXI às pessoas idosas e crianças. Hirata trata dos cuidadores, esses trabalhadores que aos poucos estão saindo dos porões da invisibilidade e ganhando espaço em uma sociedade na qual as pessoas vivem mais, com certa qualidade de vida e com possibilidades de pagamento barato de mão de obra. E eles não param de aparecer. Dificilmente uma pessoa não conhece uma avó, tia ou uma mãe que necessita dos braços jovens e fortes de uma pessoa, a priori, preparada para garantir os cuidados mais elementares do moribundo.

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Helena Hirata, socióloga com amplas pesquisas no campo do trabalho, nos revela nesse livro quem são esses cuidadores nos três países pelos quis passou e viveu: Japão, França e Brasil. Nos três traçou evidências que revelam a maturação e o desenvolvimento desse trabalho, ainda sequer legitimado entre nós. No Japão está em desenvolvimento desde a década de 1960 e, na França, a presente atividade aparece com força logo após a experiência da reestruturação produtiva e do envelhecimento da sociedade em plena flexibilidade e introdução da microeletrônica nas relações de trabalho. Alguns pontos valem destaque nessas poucas linhas que temos:

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Em primeiro lugar, o trabalho dos cuidadores é universalmente marginalizado e desvalorizado. Trata-se de um trabalho (quase)doméstico, o qual, na Europa recebeu novas roupagens devido ao recorte de gênero sendo ele questão resolvida pelas mulheres que, historicamente, se tornaram as responsáveis pelo cuidado dos velhos e das crianças, especialmente os próprios filhos. Em segundo lugar, a autora chama atenção para a racializalização desse trabalho desde as revoluções de 1970 nos EUA, país no qual as mulheres afro-americanas figuravam como amas e eram obrigadas a se restringirem aos cuidados da casa grande e dos moradores brancos. Quanto ao Brasil, Helena Hirata aponta que o trabalho foi destinado às mulheres afro-brasileiras, tal como aprendemos em Casa Grande e Senzala com Gilberto Freyre, porém o fenômeno não se dava pela qualidade de trabalho, mas sim pela desvalorizado do status. Em sociedade machista essa tarefa é das mulheres, inclusive as mulheres brancas do sudeste e do sul. Por fim, a autora revela a subordinação do cuidado à política pública de Estado, o que é incapaz de entender ou levar a efeito uma política coerente de qualificação com regulamentação da atividade laboral garantindo os direitos mais elementares como férias, salário digno, pagamento de horas-extras e licença por saúde.

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Complexo é viver na “sociedade do cuidado” sem cuidadores valorizados. Qual a pergunta a se fazer? “Quem cuida dos cuidadores?”. A autora aponta para a inegável necessidade dos cuidadores devido a três questões. A primeira questão diz respeito ao envelhecimento rápido da população, especialmente no Japão em meados do século 20, a Franca passou a enfrentar esse problema no final do século XX e, no Brasil ele emerge em pleno século XXI. O nascimento de pessoas tornou-se, ao longo do tempo, menor do que a finitude das mais velhas. É importante que as políticas demográficas sejam levadas a sério e que novas soluções sejam configuradas, dado que inexistirá o cuidado para todo(as). Um segundo ponto diz respeito a masculinização desse perfil de trabalho no Japão, atividade que, em larga medida é considerada valorizada, não pela sua importância, mas por ser feita por homens. E este é um caso a se discutir que não cabe nessas linhas. Um terceiro ponto ressaltado pela socióloga diz respeito à necessidade de levar em conta que, no Brasil, a questão pode parecer nova, mas a existência de cuidadores por aqui sempre foi trabalho de pobre, pardo, negro e pessoas desafortunadas, inclusive em atividades não remuneradas. O fato se torna grave quando inexiste a política de Estado, bem como poucas famílias que podem garantir pagamentos dignos e reduzida ou quase inexistente ação sindical.

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Como diferença dos outros dois países, a autora ressalta que o Brasil tem feito uso de mão de obra migrante, ou seja, das pessoas que saem do nordeste e que vão trabalhar nas casas dos velhos ricos em São Paulo e outras metrópoles. Também ressalta que em nosso país as mulheres são, inclusive no espaço doméstico, as responsáveis pela maior carga de trabalho quanto ao cuidado da casa, dos velhos e dos infantes. O livro, a meu ver, é de leitura obrigatória, não pelas diferenças entre Brasil, França e Japão, mas por mostrar uma nova face do trabalho como categoria socializadora que não para de nos surpreender. Também pelo descaso pelo futuro de todos os dias e por nossa vida cheia de incerteza e insegurança social em relação ao dia do amanhã. Brasileiros, em sua grande maioria, não pensam em projetos prospectivos. Culturalmente vivemos o presente e aprendemos a correr riscos na sociedade da insegurança social, na qual homens e mulheres não possuem mais a certeza de aposentadoria, direitos, vida digna diante do enfraquecimento do corpo e cuidado ante a finitude.