Cavalcanti Filho, o escritor que encontrou Fernando Pessoa

Cavalcanti Filho, o escritor que encontrou Fernando Pessoa

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

José Paulo Cavalcanti Filho contou em animada entrevista que encontrou Fernando Pessoa em Lisboa, ainda que o escritor tivesse falecido em 1935 (nasceu em 1888) [1]. Insistiu. Encontrou mesmo. Eu acredito. Narrou que viu o escritor na Praça Camões, que correu atrás dele, que saiu em debandada, que trocou de calçada, que dobrou a rua. Disse que quase o alcançou na Livraria Bertrand. Pessoa saiu correndo. Cavalcanti Filho explicou que sua esposa achou que era apenas um sósia, que se assustou com o escritor pernambucano. Cavalcanti Filho está absolutamente seguro de que se tratava, no mínimo, do fantasma de Pessoa. Eu não tenho dúvidas.

Cavalcanti Filho de fato encontrou Fernando Pessoa (com quem ainda quer conversar) tanto no sentido figurado, quanto no sentido real. O presente texto começou com a lembrança daquele primeiro sentido — figurado— (a visão de Pessoa, na Rua Garret 73, onde está a Livraria), segue agora com o sentido real. Refiro-me ao premiadíssimo livro de Cavalcanti Filho sobre Fernando Pessoa, Uma quase autobiografia. O livro levou o 1º lugar em Bienal do Livro, o Prêmio Jabuti, entre tantas outras distinções. É um livro imperdível, escrito por um membro da Academia Brasileira de Letras (cadeira 39).

Nesta biografia definitiva de Pessoa (escrita por um brasileiro) o autor “junta os pedacinhos” da vida do escritor português. Cavalcanti Filho humanizou Fernando Pessoa, questionando o pedestal e o altar no qual a tradição portuguesa o coloca, sem medo, sem restrições, e munido de fartíssima documentação. O Fernando Pessoa que se encontra no livro de Cavalcanti Filho é uma pessoa absolutamente normal (ainda que genial na escrita), com virtudes e problemas que todos temos, porque tomos somos humanos. Parece que alguns mais, outros menos.

A obra foi aceita e festejada em Portugal, e a prova desse sucesso pode ser aferida pela unanimidade da escolha de Cavalcanti Filho como sócio corresponde da Academia de Ciências de Lisboa, ocupando a vaga de Nélida Piñon.

Cavalcanti Filho, que usa técnicas de detetive (não há outra explicação), explora muito bem o tema dos heterônimos. Pessoa empreendeu até o limite essa técnica de identificação e dissimulação, contra a qual de algum modo teria se insurgido ao fim da vida, tentando reunir em obra única seus heterônimos mais significativos. Esse disfarce se confunde com o fingimento (no sentido positivo e teatral do termo); afinal, é de Pessoa o emblemático verso que nos dá conta de que “o poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Pessoa, em todos os sentidos, é um poeta cogente. E Cavalcanti, também em todos os sentidos, é um biógrafo onipresente na vida do biografado.

A vasta obra de Pessoa (cerca de 30 mil papéis) acende a mais de 150 heterônimos. Destacam-se entre eles Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, com personalidades, origens, ambiências e experimentos imaginários distintos. Um deles é bucólico (Caeiro), outro é obcecado com o mundo greco-romano (Reis) e um deles é tiete do porvir: Álvaro de Campos é um futurista.

Há suspeitas de que alguns podem, de fato, ter vivido fora da prosa e dos poemas de Pessoa. Tiveram existência real; ou, pelo menos, há muita semelhança, real ou também fantasmagórica. Cavalcanti Filho teria encontrado um Antonio Joaquim Caieiro, farmacêutico, que teria atendido em Lisboa, por volta de 1922, na Avenida Almirante Reis-108-D. Constatou a existência dessa repetição de Alberto Caieiro em um farmacêutico da época, apesar de que Antonio, e não Alberto.

A heteronímia distancia-se do mero pseudônimo, ainda que dele seja uma manifestação, na medida em que oportuniza a expansão da criação literária, em oposição ao mero pseudônimo, que camuflava a autoria, por todos conhecida. É o caso de Machado de Assis, que assinou crônicas como Dr. Semana, ou como Gil, contos e avulsos como Sileno, como Victor de Paula, críticas como Platão, crônicas em forma de poesia como Malvolio, entre tantos outros.

Pseudônimos eram muito usados em polêmicas intelectuais, comuns na segunda metade do século XIX, a exemplo das disputas em torno do livro sobre a Confederação dos Tamoios (José de Alencar contra Araújo Porto-Alegre e D. Pedro II), bem como questiúnculas entre o General Abreu Lima e o Cônego Pinto de Campos, Alencar e Joaquim Nabuco, Carlos de Laet e Camilo Castelo Branco, Júlio Ribeiro e o Padre Sena Freitas, Sílvio Romero e Lafayette Rodrigues Pereira.

Cavalcanti Filho faz uma interpolação entre a narrativa e textos do biografado. Avisa logo no início que que as passagens de Pessoa estão entre aspas. A ousadia do biógrafo está nessa técnica inusitada. O leitor, várias vezes (e o testemunho agora é meu) sente que está lendo o próprio Pessoa contando sua vida, o que justifica, plenamente, o título. O livro de Cavalcanti é, de fato, uma quase autobiografia de Fernando Pessoa.

O rigor da pesquisa fica nítido bem no início com a descrição da casa onde Pessoa nasceu, bem em frente ao Teatro São Carlos, “aos pés” do biografado. Como se lê na biografia, “Em frente [à casa e ao teatro] estátua de Fernando Pessoa em bronze (do escultor belga Jean-Michel Folon) e quatro árvores, antes arrancadas, que foram repostas. Quadrado em declive (mais baixo no teatro), e com mais uma fonte ao centro, contei 35 passos grandes nos dois sentidos do Largo. À direita de quem está no edifício fica a Rua Paiva de Andrada, pouco mais alta, a que se chega por uma pequena escadaria; à esquerda, no lado em que se vê o rio, dá para a Serpa Pinto. Construções baixas ficam entre essa rua e a igreja Nossa Senhora dos mártires; tão próxima do seu quarto que o pequeno Fernando pode ouvir as cantilenas de Natal, ainda hoje cantadas pelos fieis (…)”.

Descrição mais completa não há. O leitor é transportado para o lugar e para o tempo. Cavalcanti Filho é um obstinado, exigente na pesquisa, meticuloso, como me observou Edmilson Caminha, outro profundo conhecedor do assunto, em recente evento na Associação Nacional de Escritores-ANE, em Brasília (palestra recital de Luiz César Costa, “Manoel de Barros, o delírio do verbo”).

A biografia de Pessoa, por José Paulo Cavalcanti Filho, é um livro que todo escritor ambicioso para escrever uma obra-prima queria ter escrito. É um livro que todo leitor exigente fica agradecido e sente-se mais elevado quando termina de ler. É um livro que consagrou um escritor brasileiro em Portugal, realizando, definitivamente, dois séculos depois, o processo de “inversão brasileira”, que começa com a chegada de D. João em Salvador, em 22 de janeiro de 1808.

Cavalcanti Filho explicou Pessoa para os portugueses. Pode não haver elogio maior para a qualidade de nossas letras.

[1] Entrevista dada a Maurício Melo Júnior na TV Senado, em 3 de julho de 2014 (https://www.youtube.com/watch?v=uTfnbSq-1HU).

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 10/12/2023
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