Sem destino - Imre Kertész

Uma história diferente do Holocausto narrada por um adolescente húngaro prisioneiro em Auschwitz e Buchenwald

Imre Kertész - Sem destino, SP, Planeta do Brasil, 2003

Sem Destino (1975) é o livro mais conhecido de Imre Kertész (1929-2016), que foi o primeiro autor húngaro a receber o Nobel de Literatura (2002). A Academia Sueca declarou que sua literatura preservava “[...] a experiência frágil do indivíduo contra a arbitrariedade bárbara da história”, como ocorre nesse livro: suas obras tratam de temas ligados a ditaduras, liberdade pessoal e perseguição aos judeus, o Holocausto. Sem Destino parece ser bastante autobiográfico: embora Kertész tivesse passado por algo parecido com o que ocorreu com seu personagem, sempre negou que tivesse se retratado nele, porque dizia que desejava escrever uma obra literária e não histórica.

Kertész conta as sofridas experiências de um garoto de 14 anos, György, deportado em 1944 juntamente com outros judeus húngaros para o campo de concentração de Auschwitz (Polônia) e posteriormente para o campo de Buchenwald (Alemanha). Dali saiu apenas em 1945, quando os prisioneiros foram libertados pelos soldados aliados e ele então retornou a Budapeste. O que o fez permanecer vivo foi que, ao ser registrado como prisioneiro, alegou ter 16 anos, idade mínima para poder trabalhar no campo e assim evitar ser fuzilado ou morrer nas câmaras de gás nazistas antecipadamente.

O rapaz narra sua vida antes da prisão, com o pai e a madrasta, também seu relacionamento com a mãe, a escola, seu trabalho etc. e depois nos campos de concentração até voltar para Budapeste, de tal modo que tudo parece extremamente real, verossímil. E o faz de um jeito inocente, ingênuo, apropriado para sua idade e psicologia, que possivelmente isso fez com que muitos leitores pensassem que Kertész fosse mesmo o adolescente judeu retratado na obra. György estava descobrindo um mundo inteiro de novidades, algumas atrozes, mas com um olhar curioso, por vezes irônico, mas quase sempre evitando fazer julgamentos do que via ou pelo que passava. Acostumados que estamos a ver o Holocausto em inúmeras obras literárias e produções cinematográficas quase sempre do mesmo jeito, ficamos um tanto surpresos com Sem Destino, que retrata esse terrível episódio de um modo um tanto diferente.

Fato que a própria editora brasileira, a Planeta, destaca: “Imre Kertész nos toma pela mão e nos faz acompanhar os dias de um menino de quinze anos, o momento de sua deportação e viagem ao inferno de Auschwitz e Buchenwald. Caminhamos lado a lado, passo a passo com esse menino, da inocência ao desespero. Seguimos seu olhar, partilhamos seus pensamentos à medida que ele se transforma num espectro exaurido, vazio esfomeado que se arrasta em sapatos enlameados em meio à multidão de prisioneiros torturados não só pelo corpo despedaçado, mas pelo tédio infinito ante um futuro inexistente.” É exatamente isso que a obra nos proporciona, sem tirar nem por. Mas havia alguns momentos ou pequenas coisas que o faziam esquecer pelo que passava. Sua ironia o ajudava nisso.

Não que György fosse feliz vivendo os horrores de um campo de concentração, nunca, ninguém poderia ser, mas digamos assim que havia ocasiões que prezava, como quando podia tomar uma sopa mais substanciosa, geralmente quando ela estava acabando e verduras e legumes ou mesmo pequenas porções de carne ficavam no fundo da panela e lhe eram servidos. Pois costumeiramente a comida além de rala era pouca, às vezes nenhuma. E como estava vivo, ao contrário de outros judeus, pensava que as coisas poderiam ter sido piores. Mesmo tendo ficado gravemente doente uma vez e corrido o risco de ter sua perna inflamada amputada, o que felizmente não ocorreu. Um adulto não, mas um jovem numa ocasião dessas sem dúvida poderia dizer que sim, que havia esperança e também certa felicidade mesmo num campo de concentração. Pelo menos assim pensava o personagem de Sem Destino, um sobrevivente.