A cabra vadia - Nelson Rodrigues

Nelson Rodrigues - A Cabra Vadia - Novas Confissões, SP, Companhia das Letras, 1995

Nelson Rodrigues (1912-1980), “o maior reacionário do Brasil”, como foi apresentado por uma “granfina” certa vez, tem lugar garantido entre os brasileiros ilustres do século XX por sua vasta produção artística e jornalística: são peças, romances, crônicas, confissões etc. Conhece-se bem o homem genial e sua obra também através de sua biografia definitiva escrita por Ruy Castro, O Anjo Pornográfico, excelente. Ruy também está presente neste A Cabra Vadia, Novas Confissões; ele fez a seleção do material e escreveu a introdução: A “Cabra” de Volta – E Para Ficar (trata-se de uma reedição revista de parte da obra de Nelson, com cerca de oitenta textos).

Embora sejam crônicas elas também são confissões. A temática confessional em Nelson é muito forte: ele é quase sempre ou é sempre o protagonista de cada uma delas. Assim, suas crônicas diferem substancialmente daquelas de outros cronistas de seu tempo, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos etc. Nelson se distinguia deles não apenas ou exatamente pelos assuntos tratados, mas como os enfocava: com seu estilo próprio, rodrigueano, único. Então, numa mesma coluna, em que falava de política, dos Kennedy, de Cuba, China, Vietnã ou URSS, passava a falar também do decote generoso da atriz Elizabeth Taylor, uma de suas fixações cinematográficas, tantas vezes ela é citada aqui (ou Ava Gardner, menos citada, mas igualmente outra bela mulher de seu tempo). E isso não soava nada estranho, muito pelo contrário.

Apesar de começarem e terminarem todas em 1968, as confissões rodrigueanas deste livro vão aquém e além dessa data. 1968 foi um ano marcante na história mundial e que por aqui rendeu livros (como o de Zuenir Ventura, por exemplo) ou polêmicas diversas. Uma delas: o uso de uma foto de uma conhecida atriz participando de uma passeata de protesto como se fosse de outra pessoa, uma senhora petista conhecida não exatamente pela competência, entre outras coisas. Além disso, alguns dos desafetos então na mira de Nelson permaneciam vivos quando o livro foi lançado: Nelson Motta, Caetano Veloso, José Celso Martinez Correa, Vladimir Palmeira, Geraldo Vandré, Chico Buarque.

Mas seus alvos preferenciais foram mesmo D. Hélder Câmara, “o arcebispo vermelho”, pensadores católicos (Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção), “granfinos e granfinas” do Rio e São Paulo, simpatizantes de Cuba, China, Vietnã e da então URSS, artistas, intelectuais e estudantes esquerdistas etc. E na leitura de A Cabra Vadia algumas vezes pode ser necessário consultar a internet para se saber exatamente quem era o “homenageado” de Nelson em certas confissões, não conhecemos todos os citados.

Ou então quem eram os amigos mais íntimos de Nelson (geralmente escritores, jornalistas etc.), quase todos mortos há algum tempo (mas Carlos Heitor Cony permanecia vivo então). Amigos que, tanto quanto seus leitores fieis, certamente se divertiam muito não apenas com os casos que contava, também com as expressões que ele criava para designar coisas, fatos, pessoas etc.

Delas todas, certamente a mais conhecida é “óbvio ululante”, mas há também o “padre de passeata”, o “idiota da objetividade”, a “amante espiritual de Che Guevara”, o “falso canalha”, o “revolucionário de festival”, a “esquerda festiva”, que depois gerou a moderna “esquerda caviar”, e outras. Uma “cabra vadia”, a do título do livro, tinha exatamente a função de “testemunha ocular” ou “elemento paisagístico” em uma “entrevista imaginária” com um de seus alvos preferenciais (leia-se D. Hélder), coisa que ele fez mais de uma vez.

Mas não é apenas fel que Nelson destila em suas confissões. Além de apresentar informações bastante interessantes sobre si mesmo, seus amigos e adversários, sobre a época em que viveu, nelas há também muita ironia e tiradas bem-humoradas. Graças sobretudo às situações que se apresentavam no Rio e no país, ao arcaísmo de nossos homens públicos e da sociedade brasileira em geral. Nelson fustigava Cuba e a então URSS, via com simpatia a ação política do general De Gaulle e não depreciava os governantes americanos (os irmãos Kennedy e depois também a bela viúva Jacqueline, claro), o que lhe valia a crítica impiedosa da tal “esquerda festiva”, intelectuais e estudantes que flertavam com Castro e os soviéticos. Que depois, em retorno, eram devidamente “homenageados” por ele em suas colunas jornalísticas.

Na prática, ler este livro tem, guardadas certas ressalvas, quase o mesmo significado de um mergulho na história do Brasil de grande parte do século XX, especialmente nos anos 1950-1960 (não apenas 1968), sem se sentir um estudante secundarista ou universitário, e ao mesmo tempo se divertindo bastante. Como nesse simpático trecho de A Morte do Teatro, por exemplo, que diz respeito à classe teatral de então, que nutria ideias bem diferentes das suas. Nelson diz: “Eu me sinto só, e tão só, como um Robinson Crusoé sem radinho de pilha.”

Então, se quiser espantar a solidão ou não, em vez de seu cãozinho ou radinho, o leitor pode levar A Cabra Vadia (ou qualquer outro livro de Nelson Rodrigues) para sua próxima estadia numa ilha deserta ou habitada, não sei bem. Será sempre uma boa companhia para este sábado, amanhã domingo, o restante do mês, do ano de 2023, 2024, 2025...