Literatura e memória

Literatura e memória

O Brasil tem um sério problema de memória. Não raro, esquece personagens importantes – das gênias às geniosas. Enquanto estas não merecem ser lembradas, mas precisam; aquelas merecem e precisam em virtude dos grandes feitos. As injustiças atravessam o tempo. Os injustiçados são omitidos ou revelados a depender de quem escreve a história. Cícero Belmar em “O livro das personagens esquecidas” (Companhia Editora de Pernambuco – Cepe, 142p), terceira obra de contos do autor, traz 25 histórias de personas simples e ao mesmo tempo complexas. As idiossincrasias diversas são tratadas de maneira objetiva e potente.

O autor dá voz aos contos sempre em primeira pessoa, mas imprime em cada texto um tom diferente sem que a obra deixe de ter unidade. Ser versátil pode dar a entender que o escritor não alcançou o seu estilo. Mas isso é realmente obrigatório? Não é o que ocorre nos textos de Belmar, já que é possível perceber um escritor consciente do seu ofício, da sua tessitura, ou – como diria Autran Dourado – da sua carpintaria. Escrever contos não é tarefa fácil, comentário feito por grandes mestres, como Cortázar, Mario de Andrade, Fernando Sabino, Edgar Allan Poe, entre outros.

Nessas personagens retratadas cabem (ou não) muitos brasileiros, oprimidos pelo conservadorismo, por políticas de exclusão e pela violência (re)velada nas manchetes. O próprio autor confessa que todas elas têm “um pé na realidade” e que escreve porque entende a literatura como um instrumento essencial para combater o esquecimento. Todo escritor deveria admitir que a arte literária é uma atividade para manter acordados alguns monstros e adormecer outros.

Em entrevista concedida a Cepe, o autor admite que os contos atravessam questões políticas. Sabe-se do quão difícil é escrever literatura engajada sem cair no panfletário. Mas todo risco que se corre é imprescindível para mobilizar e sensibilizar leitores dispostos à reflexão. Belmar não teme. Avança sobre realidades e lhes confere fantasia para que as violências ganhem novos contornos a partir da lapidação da linguagem literária. Numa primeira leitura, os contos podem soar singelos, dado que a concisão do autor exige que o leitor olhe com calma o que se esconde nas entrelinhas. São as metáforas, as alegorias, a polifonia do passado que se faz presente.

E, em se tratando de múltiplas vozes, o autor não está sozinho. Sendo integrante do grupo de estudos e oficina permanente Autoajuda Literária, de Pernambuco, solicitou a leitura crítica de diversos colegas. Sendo assim, é preciso reconhecer que o “O livro das personagens esquecidas” é uma obra coletiva também na medida em que outros escritores pernambucanos se aliaram a Cícero Belmar. Que as tantas memórias que essa obra traz não caiam no esquecimento, que o tempo as conduza à conquista de dias melhores para a valorização da literatura, do Brasil, do mundo. Afinal, como diria a poeta Adélia Prado: “Tudo que a memória ama fica eterno”.

Leo Barbosa é professor, poeta e escritor.

(Texto publicado em A UNIÃO em 21/10/2022)