Resenha de Aquela água toda- de João Anzanello Carrascoza

"Quem de nós não sonhou, em seus dias de ambição, com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e rica de contrastes para se adaptar aos movimentos líricos de uma alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?"

Baudelaire

Aquela água toda transborda do mesmo mar intimista de Drummond. Como o nome sugere, é repleto de totalidade, de lirismo e da imensidão dos pequenos momentos do cotidiano. Cada conto é um súbito empurrão e toca o leitor de forma a ressoar até que o próximo venha e faça o mesmo. A linguagem poética e repleta de figuras escorre para além das páginas.

As histórias ficam, como visita que se nega a despedir-se. Os narradores meninos, as relações familiares, os prazeres das paixões da juventude, dos passeios e da volta para casa depois da viagem são presença contínua da vida comum na qual nos enxergamos. Recursos como o acumulado de vírgulas e a raridade dos pontos finais, proporcionam um alongar-se, como em Mundo justo, e nos deixam diante da continuidade, da infinitude e da profusão dos momentos irrisórios e importantes. Até mesmo a morte, no caso do cachorro que talvez aguardasse apenas um último afago, da mãe dedicada, de tia Alda e de Edu, é tratada de forma doloridamente doce e afetuosa. Leitor e narrador unem-se a partir da empatia e da ternura, essa última, aliás, incômoda e sem definição.

O olhar curioso é o olhar da descoberta. A ideia de “ver com olhos livres” é notória: A linguagem simples e a perspectiva da criança, da inocência de quem descobre, aprende, aceita e ensina sobre a imensidão. Do mar, dos aviões voando baixo e exibindo-se barulhentos, da vida tão simples e tão nossa.

Aquela água toda reúne onze narrativas encantadoramente contaminadas de poesia e que dela se valem para enlevar pequenos momentos e iluminar cada instante azul-azul perdido dentro de casa todos os dias entre o nascer, o experimentar e o morrer. É a vida em trânsito, assim como o trânsito entre prosa e poesia. Um livro escrito não só para ler, mas principalmente para sentir, como um delicioso banho de mar que nos preenche dentro e fora com aquele azul todo.